Arquivo Pessoal
Por: Jacqueline Maria da Silva | Katia Flora
Notícia
Publicado em 23.09.2022 | 17:02 | Alterado em 27.02.2024 | 16:58
“A bisavó ensinou a avó, depois ensinou minha mãe e na sequência entrei nessa profissão ajudando ela”, conta Eloisa Fernandes, 38, sobre como aprendeu a trançar, herdando saberes ancestrais.
A trancista e megarista (que faz alongamento) transformou a cabeça em uma espécie de vitrine e conta com entusiasmo o início na profissão. Quando começou, ainda adolescente, separava os fios para a mãe no salão improvisado na garagem de casa.
O estímulo para seguir na área veio de todos os lados, e assim montou seu primeiro salão no centro de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Hoje, possui um espaço grande, o Charme Black, com 17 funcionários.E ali pratica sua arte.
“Meu trabalho é um artesanato no cabelo das clientes, gosto de ver o resultado final e satisfação de quem atendo”
Eloisa Fernandes, trancista
Satisfação que traz o resgate das raízes afro e acende a autoestima em mulheres negras. É o caso de Marli Rabelo Carvalho, 50, que adotou o cabelo raspado há seis meses. “Me apaixonei por mim mesma, me identifiquei e me vi outra pessoa, meus olhos brilharam”, diz ela, sobre o momento em que se olhou no espelho.
Um pouco de gel e pasta modeladora definem o penteado da moradora do bairro de Guarapiranga, no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo.
“É moda entre as mulheres”, acrescenta ela, que é acompanhante de idosos e decidiu raspas por considerar fashion e prático para o dia a dia.
Antes do raspado, Marli estava com um corte com cerca de três dedos de comprimento. O ajuste ficava por conta de uma esponja específica com duas faces, uma que cacheia e a outra que dá volume ao crespo.
Esse é um dos inúmeros acessórios e produtos para quem tem cabelo afro, comenta a cabeleireira Beatriz Cerqueira dos Santos, 28. Entendedora do assunto, ela define seu cabelo como 3C (crespo com cachos fechados) que usa com corte médio arredondado no estilo black power.
Segundo Beatriz, existem muitos produtos direcionados ao público, como o pente garfo, o elástico de cetim para poder não danificar os fios, e a touca de cetim que foi desenvolvida para facilitar no day after .
Para ela, não existem limites na hora de inovar com os crespos. Em seu salão no Jardim Veloso, em Osasco, na Grande São Paulo, onde também reside, rola coloração, cronograma capilar para recuperação dos fios e soltura de cachos, e procedimentos que ajudam as mulheres a aceitar a curvatura natural do cabelo.
Há uma diversidade de estilos que ela mesma já experimentou. “Loiro e ruivo, e hoje ele já está mais natural com alguns pontos de luz”, comenta.
Beatriz cita também o afro puff, um coque tradicional para cabelo crespo, seu penteado favorito para o dia a dia e que é tendência entre as mulheres negras, afirma. “Facilita a vida das cacheadas.”
Uma marca da negritude, as tranças são uma herança dos antepassados que a faziam para “esconder” o volume do cabelo, conta Beatriz, cabeleireira especialista em afros.
Além disso, ela explica que muitas mulheres consideram a trança um modo de transição do cabelo alisado ao natural e não entendem a sua importância. “A trança nagô veio dos negros e tem toda uma a história por trás dela”, diz.
A jovem usou muita nagô na infância, mas não existe só essa. Na adolescência, por exemplo, Marli era adepta do kanekalon. Entenda o que é cada uma:
Nagô: tranças feitas com o próprio cabelo ou com cabelo sintético e colocadas na raiz. É também conhecida como trança raiz
Kanekalon: é um tipo de material sintético parecido com fio de cabelo. Além dele, tem o jumbo ou marley hair para trançar (depende do valor que a pessoa pode gastar e do resultado final que ela procura)
Box braids: estilo de trança solta, mas pode ser feita tanto com kanekalon ou jumbo
Crochet braids: é um método de aplique e existem vários tipos. Pode ser de tranças, twists, dreads (também conhecidos como faux locs) ou até mesmo uma fibra de cabelo – tipo um cabelo liso, crespo, cacheado ou ondulado, tudo isso sintético
Beatriz passou parte de sua vida alisando quimicamente porque essa era a referência de beleza que tinha na época. Há sete anos decidiu retomar o natural, tarefa nada fácil.
“Me falavam ‘por que você fez isso com seu cabelo? Ele era tão bonito liso’. A transição tem sido algo dolorido para nós mulheres negras”, desabafa.
Apesar das críticas, ela resgatou sua identidade. “Via e não me reconhecia, aquela pessoa de cabelo liso tentando se enquadrar no perfil da sociedade”. E por meio desse processo encontrou também a missão de ajudar outras mulheres a aceitarem seus cabelos.
Tanto Eloisa quanto Beatriz comemoram o reconhecimento de seus trabalhos e a clientela diversificada que chega a ter mulheres idosas, homens e crianças.
Neste último caso, o trabalho é mais delicado, comenta Beatriz. “Quando vai uma criança na qual a orientação é uma mãe de cabelo liso, aí é uma reconstrução, porque para ela o cabelo liso se torna como referência no dia a dia”, comenta.
A cabeleireira se alegra também pelo espaço que as mulheres negras empreendedoras têm ganhado e isso se deve a transição para os cabelos naturais que abriu demanda por profissionais na área.
Conquista importante também para Eloisa, que teve de provar até que era dona do próprio salão e agora tem sonhos maiores: criar uma franquia de salões especializados em tranças em outras cidades do Brasil.
Com 23 anos de experiência na área, ela passou a ensinar as técnicas do trançado no Charme Black School, espaço que criou no Jardim Orquídeas, também em São Bernardo do Campo, a fim de formar novos profissionais especializados em afro.
Inclusive, elas reconhecem a diferença quando o trabalho é executado por alguém que entende sua vivência. “Uma mulher negra cuidando do cabelo de outra negra, eu digo que é empatia”, conclui Beatriz.
Apesar da demanda a expansão de salões para o público negro, o que se vê é carência de profissionais e formação específica para quem quer trabalhar com cabelos crespos e cacheados. Marli percebe uma ampliação discreta, já que passou 20 anos fazendo permanente afro em um dos poucos salões específicos da época.
A Agência Mural buscou dados sobre a quantidade de salões especializados em cabelos afro e gerenciados por empreendedoras negras. De acordo com a Fecomercio (Federação do Comércio) de São Paulo, não existem números segmentados.
Até o fechamento desta reportagem, o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) não respondeu ao nosso pedido de informação.
Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.
Jornalista com experiência em jornalismo online e impresso, tem publicações em diversos veículos, como Uol, The Intercept e é ex-trainee da Folha de S. Paulo no programa para jornalistas negros. Correspondente de São Bernardo do Campo desde 2014.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
Se você quer saber como republicar nosso conteúdo, seja ele texto, foto, arte, vídeo, áudio, no seu meio, escreva pra gente.
Envie uma mensagem para republique@agenciamural.org.br