Matheus Pigozzi/Agência Mural
Por: Guilherme Silva
Edição: Laiza Lopes, Sarah Fernandes e Paulo Talarico
Arte: Matheus Pigozzi
Publicado em 12.04.2024 | 10:10 | Alterado em 12.04.2024| 13:59
Assédio, instabilidade das redes e preconceito são as principais preocupações de mulheres das quebradas inseridas neste mercado. Elas relatam o que levou a entrar nesse mercado, os problemas com as plataformas e como enfrentam a falta de regulamentação
Tempo de leitura: 8 min(s)ATENÇÃO: Esta reportagem trata de um tema sensível e envolve relatos sobre o trabalho sexual.
Nos melhores dias, Marcela*, 26, tem uma rotina que preza pela organização de duas ocupações profissionais. Em um primeiro momento, responde a chats de sites adultos e, em seguida, organiza e posta fotos no feed com teor sensual.
Às vezes lança stories para divulgar conteúdos já produzidos e, só depois, começa o trabalho que garante a renda principal com marketing digital.
A venda de conteúdo adulto na internet se tornou uma alternativa de renda para pessoas das periferias, para conseguir pagar as contas. No entanto, a função é permeada por desafios e complexidades que vão além da exposição do corpo.
Casos de assédios e clientes invasivos são só algumas das situações vivenciadas por profissionais da área, que também precisam lidar com preconceito e conservadorismo.
“Sofro bastante por conta dos comentários. Já vi clientes comprando o meu conteúdo e depois indo comentar coisas bem machistas em páginas conservadoras”, conta Marcela, que vive no Grajaú, na zona sul de São Paulo. “Tem muitos dias em que me sinto muito mal fazendo isso. Só queria não precisar fazer”, desabafa.
Ela mora com um filho e o namorado, que às vezes ajuda e participa da produção de conteúdo. O emprego principal da jovem e do namorado, que também trabalha, é insuficiente para sustentar a casa.
Nascer e crescer no Grajaú sendo uma pessoa de baixa renda moldou a perspectiva dela sobre a realização das conquistas.
‘Tem poucas coisas que eu não faria para dar uma condição de vida melhor ao meu filho’
Marcela*, moradora do Grajaú que vende conteúdos pela internet
Os sites de conteúdo adulto, como o OnlyFans, Privacy e o mais antigo Câmera Privê, não foram a primeira experiência de Marcela como SW (sex worker, na linguagem das redes sociais).
A história começou em 2021 com lives e sessões privadas de videochamada em aplicativos de encontro e, com o tempo, acabou mergulhando de cabeça nesse mundo. “Tenho que comer, pagar aluguel. Para quem estava com o pé dentro desse aplicativo, eu não tinha muito o que perder”, diz Marcela.
Trabalhando para sites adultos foi necessário mudar a estratégia: se antes os homens buscavam Marcela nos aplicativos, agora ela precisava criar perfis nas redes sociais, com nome falso, para buscar engajamento e, consequentemente, clientes que comprem o conteúdo.
“Uso um nome fictício para me proteger, mas não sou anônima”, ressalta ela, reforçando que seu rosto aparece nas gravações.
A renda obtida com esse tipo de ocupação é variável. Já recebeu até R$ 3.000 em um mês, mas há meses em que o valor não passa de R$ 300. “Tem que matar um leão por dia”, resume.
Para quem não tem fama, o mercado de conteúdo adulto não é simples. “Não é uma coisa barata. Quanto mais você vai crescendo, mais você vai precisar investir para melhorar a qualidade técnica do material”, comenta Marcela.
‘Uma live que tem brinquedos eróticos, lingerie, roupas envolve uma série de gastos adicionais que ninguém cobre’
Marcela escolheu a dedo quem teria conhecimento do segundo trabalho e, nessas pessoas, encontrou compreensão e acolhimento. Além do namorado, alguns familiares e pessoas próximas sabem da ocupação.
“Mesmo que fosse algo visto com maus olhos, não ia ser falado diretamente para mim, até porque tem aquela divisão do que diz respeito e o que não diz respeito a eles, mas no final, todo mundo entende as minhas motivações”.
As redes sociais são os principais instrumentos de trabalho para as SW. Por elas, é essencial divulgar trabalhos e se conectar com o público.
Para conquistar novos clientes pagantes, as SW precisam jogar o jogo das bigtechs: ser ativas nas redes sociais, compartilhar vídeos e fotos, interagir com os clientes e com outras SW para, assim, tentar viralizar.
Pesquisadora da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP (Universidade de São Paulo), Lorena Caminhas estuda o trabalho sexual plataformas digitais e aponta as dificuldades que quem produz conteúdo enfrenta.
‘Não é como se você fosse lá e fizesse um conteúdo super soft, com roupa, ou uma lingerie, ou um biquíni, e ganhasse R$ 100 milhões de uma vez. Não é simples assim’
Lorena Caminhas, pesquisadora sobre trabalho sexual plataformas digitais.
É bem diferente de pessoas famosas. As “estrelas” desse segmento costumam divulgar valores altos vindos dessas plataformas. Mas, em geral, essas quantias vão para mulheres que antes já tinham milhões de seguidores.
A pesquisadora afirma que não é fácil ganhar dinheiro com esse tipo de conteúdo, pois requer preparação, divulgação e conhecimento sobre como liberar o conteúdo. “Tem toda uma preparação para conseguir vender”, afirma Lorena.
Outro desafio são os riscos a que essas mulheres ficam expostas. “As plataformas têm termos que as protegem, mas que não protegem as pessoas que estão trabalhando ali”, explica.
Natalia*, 24, também é criadora de conteúdo adulto e enxergou na profissão uma oportunidade de ter uma renda extra. Diferente de Marcela, Natalia mora só, é formada em comunicação social, mas o principal rendimento é com atendimento ao cliente de um call center na capital paulista.
Ela nasceu e cresceu em Campinas, mas foi no Jardim Iporanga, outro bairro periférico da zona sul de São Paulo, que conseguiu conforto em uma casa de aluguel.
“Nunca tive uma relação muito boa com meus pais e com a minha família, tive que sair de casa com 15 anos e tentar a vida em outra cidade, mas acho que me encontrei aqui, tenho meu canto, minhas coisas, minha paz”, conta.
Para ela, uma das questões que dificultam o trabalho é a falta de regulação sobre o que pode e não pode no ambiente virtual. As redes sociais acabam sendo um ‘chamariz’ para divulgar o trabalho feito em outras plataformas.
‘Nós nunca sabemos quando vamos acordar, abrir as redes e ter perdido a conta devido ao conteúdo mais sexual’
Ela cita que isso também ocorre com os sites. Em 2021, a plataforma OnlyFans decidiu bloquear o conteúdo adulto do site, mas cedeu à pressão e desistiu uma semana depois. “Sem falar das taxas absurdas que fazem nosso lucro ser mínimo.”
REGRAS DAS PLATAFORMAS
Plataformas de redes sociais possuem regras de uso e, no caso de descumprimento, podem excluir conteúdos e páginas. Em geral, dentre as regras, está questões como desinformação, a propagação de ódio e rascismo, mas também conteúdos sexuais explícitos.
Para a pesquisadora Lorena, apesar de as redes sociais representarem uma oportunidade de aumentar a visibilidade, é comum que as trabalhadoras sexuais percam contas devido aos termos de uso e às políticas de privacidade que tentam restringir o conteúdo erótico no geral.
“Se a conta delas cai, elas perdem todo aquele potencial de venda, por mais que tenham uma conta reserva, têm que começar de novo. Isso é um aspecto de extrema dependência das redes sociais”, diz.
Segundo Lorena, esse movimento mais duro para derrubar contas nas redes sociais ligadas ao mercado erótico ganhou força após 2018, por conta de um conjunto de leis americanas chamado SESTA/FOSTA, que teve um impacto significativo no mercado digital brasileiro.
A lei ampliou a definição de tráfico sexual e tornou mais difícil para as plataformas digitais removerem conteúdo que seja considerado ilegal. Mas, ao mesmo tempo, levou à remoção de vários sites e aplicativos brasileiros que eram usados para anunciar e comercializar serviços sexuais.
“Apesar de ter uma diferença entre o que é exploração da imagem sexual ou exploração sexual das pessoas, as leis não fizeram essa diferenciação”, explica Lorena. “Qualquer conteúdo que possa ser interpretado como pornográfico ou um tipo de trabalho que gera exploração, é excluído.”
O acesso mais amplo desse mercado online pode trazer novos desafios, como a concorrência acirrada nas plataformas e a falta de regulamentação específica, além de levantar preocupações sobre segurança e direitos trabalhistas.
Apesar do dinheiro recebido nas plataformas, que complementa as contas da casa, Natália deixa claro que a venda de conteúdo na internet tem mais pontos negativos do que positivos.
Além do assédio, invasão de privacidade e julgamentos conservadores de conhecidos e desconhecidos, o que abre margem para outro problema.
Os dilemas sobre a criação de conteúdo adulto por mulheres não se resumem a uma questão de renda ou regulamentação. Esbarram também no machismo estrutural, muito presente na sociedade brasileira, como avalia Thamiris Santos, coordenadora da ONG Mulheres da Luz.
O projeto é dedicado a apoiar mulheres em situação de prostituição, incluindo travestis e transexuais, e colaborar na criação de políticas públicas que considerem as particularidades de cada grupo, respeitando suas diferentes vivências e necessidades.
‘A gente precisa ter um trabalho com os homens, até mesmo para conscientizá-los’
Ela afirma que é necessário questionar a objetificação sexual das mulheres: “Por que esse homem precisa procurar uma mulher nessa situação para se satisfazer?”, questiona Thamiris. “Por que ele precisa colocar essa mulher na situação que ela aceite todos os seus desejos e fetiches para poder o satisfazer?”
A situação legal das trabalhadoras sexuais no Brasil é complexa e a conversa sobre a regulamentação da profissão mudou ao longo do tempo.
Atualmente, a prostituição não é ilegal, mas certas atividades relacionadas a ela são, como a cafetinagem e a exploração sexual infantil.
A atividade, porém, não é regulamentada, o que deixa as trabalhadoras sexuais legalmente livres de vender sexo, mas sem direitos trabalhistas específicos. Para vendedoras de conteúdo adulto na internet, então, a situação é ainda mais complicada em termos de regulação.
LEI NÃO SAIU DO PAPEL
A Lei Gabriela Leite (PL 4211 de 2012), proposta pelo ex-deputado federal Jean Wyllys [do PSOL-RJ] previa a regulamentação. Porém, feita há mais de dez anos, ela ficou ultrapassada e sequer foi aprovada.
“Ela já está antiga e o que regulamenta é o que a gente entende como prostituição, sendo a ocupação presencial, na rua ou em bordéis, hotéis. Ela não fala de trabalho sexual online ou digital”, pontua Lorena.
Thamiris destaca a urgência de uma regulamentação que aborde a realidade das trabalhadoras sexuais como forma de combater a desigualdade. Ela enfatiza que essa regulamentação deveria envolver diretamente as mulheres. “[A lei] devia ser construída com as mulheres que estão aqui na rua, para que elas colocassem as propostas delas”, afirma Thamiris.
Para se ter uma ideia, a prostituição, por exemplo, é reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações. Porém, a maneira como é regulamentada pode agravar desigualdades sociais. “Por mais que a prostituição esteja inserida dentro da CBO, quem quer ter isso colocado em carteira de trabalho?”, questiona Thamiris, que cita outros problemas nesse tipo de contratação.
‘Elas têm um horário a cumprir, uma meta e têm o percentual de INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) para pagar. Quantos programas essa mulher teria que fazer (para pagar o percentual)?’
Thamiris ainda afirma que mulheres idosas e negras são discriminadas nos estabelecimentos destinados à prostituição e podem ser as mais prejudicadas: “Piora a situação se tratando de mulheres idosas quanto a maior idade maior e o tom da pele. As casas já não aceitam mulheres negras, então essas mulheres terão o menor valor delas nas ruas.”
A Agência Mural contatou as plataformas Privacy, Câmera Prive e OnlyFans para obter posicionamentos sobre as dificuldades enfrentadas pelas criadoras de conteúdo. No entanto, até o momento, não obteve resposta por nenhum canal.
As criadoras de conteúdo entrevistadas relataram que o suporte das plataformas é insatisfatório, inclusive para casos de assédio, vazamentos e remoção de conteúdos. A Privacy, apesar de ser brasileira, possui a pior reputação entre elas.
As principais reclamações são a falta de suporte e a demora no atendimento. A OnlyFans, plataforma britânica, também oferece um suporte precário. “Tive suporte via e-mail, com retorno bem demorado e em inglês, igual do Google”, diz Marcela.
O Câmera Prive abriu um protocolo para resposta, mas retornou dizendo que “(todas) informações são privadas e estão sob sigilo de contrato com todos os nossos clientes” e após isso, não respondeu mais o contato.
*Os nomes foram trocados para preservar a segurança das entrevistadas
Jornalista formado, social media, produtor de podcast e redator. Filho da dona Edna e do seu Zé. Desbravo a conhecer a cidade com minha bicicleta. Amante de livros, músicas emo e Star Wars. Correspondente da Cidade Dutra desde 2022.
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