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Por: Matheus Oliveira

Notícia

Publicado em 28.03.2024 | 18:58 | Alterado em 31.03.2024 | 22:57

Tempo de leitura: 5 min(s)

Historiador e integrante do CPDOC Guaianás – coletivo de pesquisadores destinados a recuperar e destacar a história dos bairros periféricos da cidade de São Paulo, Adriano Sousa vive em São Mateus, na zona leste de São Paulo, e vê diversos impactos no regime militar nas periferias.

Para além da repressão, ele explica como a ditadura também acabou sendo responsável pelo modelo de expansão que a cidade de São Paulo viveu, com a criação de conjuntos habitacionais longe do centro.

O historiador também critica a decisão de não se relembrar a data de 60 anos do golpe, tomada pelo governo federal. “É um grande desrespeito com as periferias do Brasil, que lutaram contra a ditadura”.

Confira os principais trechos da entrevista:

Agência Mural: Qual é a importância da gente não só relembrar o que foi a ditadura militar, mas também da gente destacar essa relação entre periferia e a ditadura?

Adriano Sousa: Todo território é construído por essa forma de acumulação que a ditadura organizou. A gente tem uma herança da ditadura civil militar que é a Polícia Militar que age um pouco como a ditadura agiu, como se fosse um poder, uma classe superior ao restante da população. A gente tem muitas mortes que não são explicadas nas periferias. A memória da ditadura serve para isso, para entender quem são os aliados da ditadura que ainda estão vivos e para que a juventude entenda que teve muita construção democrática nas periferias para derrubar a ditadura.

Qual foi o primeiro impacto da ditadura nos bairros periféricos?

Nesse período, a gente pode pode dizer que teve um impacto de desarticular alguns grupos de SABs (Sociedade de Amigos de Bairro). Algumas SABs tinham uma influência de esquerda, apesar de serem disputadas pelo janismo pelo ademaristas [nome dado a seguidores de Ademar de Barros, ex-governador do estado, e Jânio Quadros, que foi prefeito, governador e presidente]. Um dos grandes impactos logo de cara seria esse porque o braço do trabalhismo ou das esquerdas, que havia nas periferias, estava nessa disputa das SABs.

Adriano atua no CPDoc Guainás, em Guaianases, na zona leste @Divulgação

Com relação aos anos 1970 e 1980, o que mudou?

Nos territórios, teve uma repressão policial forte. Temos levantado informações sobre o assassinato do Robson da Luz, um jovem negro que foi morto e torturado na delegacia de Guaianases já no fim dos anos 1970. Ele foi um dos mortos por conta da fundação do MNU (Movimento Negro Unificado). E tem evidências de aparelhos clandestinos em Cidade Tiradentes também. Nas periferias, houve muitos casos de esconderijo de alguns militantes, rota de fuga. No caso do Aldo Leite, um militante que nos anos 1970 morava aqui em São Mateus, era comunista. Ele utilizou o território como rota de fuga para as pessoas que fugiam da ditadura.

Vários movimentos surgiram nesse período?

No fim dos anos 1970, com a explosão [populacional] dos territórios periféricos, a gente vai ter várias militâncias. Vai acontecer Clubes de Mães em Perus, na zona sul, na zona norte, a gente vai ter as comissões de saúde, movimento do custo de vida. E eles vão indicar direitos à cidade, [a necessidade de] direitos sociais. E eles vão acabar sendo um ponto de tensionamento com a ditadura. Outro fato que eu acho que é importante de trazer: o cemitério do Lageado foi citado na Comissão Municipal da Verdade, junto com o Cemitério de Perus, como lugar de enterro de ossadas de pessoas que desapareceram.

Falando sobre Perus, a região conta também com a resistência dos trabalhadores da Fábrica de Cimento.

O Centro de Memória Queixadas, que é uma coletividade que guarda a história da greve de sete anos [de 1962 a 1969], que começou antes da ditadura e continuou durante o regime. Muitos trabalhadores foram perseguidos pela ditadura em parceria com o dono da fábrica de cimento. A gente tem movimentos grevistas oprimidos.

Qual foi o papel de projetos como a construção das Cohabs e da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano), tanto a Cidade Tiradentes quanto em cidades da região metropolitana? Foram formas de diminuir a tensão entre a população periférica e o governo?

Durante a ditadura civil militar, tem toda uma estrutura da indústria de construção civil pesada. Só pegar as grandes obras como Itaipu e algumas rodovias estaduais ou federais, a ideia da Transamazônica. Na cidade de São Paulo não foi diferente. No centro expandido, você vai ter os viadutos, avenidas abertas como a própria Radial Leste, as obras do metrô.Nas periferias, a gente também tem esse formato, de fomento a esse tipo de indústria. A socióloga Carolina Freitas fez um trabalho sobre a Cohab José Bonifácio, e ela coloca que o projeto da ditadura com a moradia das Cohabs (Conjuntos Habitacionais) é uma forma de você disfarçar uma menor remuneração do trabalho com a moradia. Essa ideia de o trabalhador adquirir uma propriedade para de certa forma camuflar o arrocho salarial. Uma contrapartida para ficar menos insatisfatório.

E qual características esses projetos trouxeram para as periferias?

Se inauguraram prédios sem levar infraestrutura urbana. Ela fala da Cohab como uma reprodução do padrão periférico de crescimento que era o de lote comprado de fazenda e o próprio morador construindo embora a prefeitura construiu. As obras eram cheias de irregularidades. Inaugurava os quartos sem acabamento, as ruas sem asfalto, sem guia, sem sarjetas, esgoto e sem luz. Com problemas e muito longe do centro. Nesse mesmo livro, Carolina relata que Metrô e Cohab tinham uma parceria por serem ambas da prefeitura. Quando o metrô passa para o estado, a obra do metrô atrasa em 10 anos no caso da Cohab José Bonifácio. Aí você tem uma população chegando em torno de mais de 100 mil pessoas com pouquíssimos ônibus para ir para o centro.

‘É um projeto de segregação de manter essa população pobre longe, de manter ela mal paga e ao mesmo tempo de extrair mais capital dela ao transferir dinheiro para construtoras e escritórios de arquitetura que não cumprem as regras mínimas da prefeitura’

Como avalia essa decisão do governo federal de não relembrar essa data de 60 anos do golpe?

Acho um grande desrespeito com as próprias bases políticas que são das periferias, que lutaram contra a ditadura militar. É um grande desrespeito com as periferias do Brasil. Muitas pessoas foram torturadas, fugiram por conta da ditadura. A gente como periférico relembra o que o trabalhador conseguiu construir nesse período nas periferias e também as opressões, as privações. É mais do que falar dos mortos e desaparecidos, que eu acho que é o capítulo mais triste. Temos toda uma gama de autoritarismos que a ditadura cometeu que é assunto para várias áreas, área econômica, jurídica, a estruturação da Polícia Militar.O próprio enriquecimento das empreiteiras durante esse período.

Como isso impacta na reflexão que poderia ser feita sobre o impacto desse período?

Muita coisa poderia ser lembrada e o que o presidente fez questão de não ser por conta de um acordo com os militares. E a gente sabe que não há acordo com os militares. Já foi feito em 1978 e eles voltaram com toda a força no último período. Inclusive, rechaçaram a ideia de um museu da memória e da verdade, que poderia ser um disparador para diversas iniciativas locais pelo país, mas que também foi ceifada por essa conciliação que passa de todos os limites.

Quem hoje atua para mostrar esse cenário nas periferias?

O Centro de Memória Queixadas de Perus, que é uma coletividade de mulheres que tem feito a guarda desse acervo da história de Perus. O Centro de Memória Ana Dias, sobre as lutas da zona sul, que está fazendo uma reflexão importante sobre a atuação dos trabalhadores metalúrgicos. Tem um projeto do Instituto Vladimir Herzog com coletivos periféricos que tem vídeos sobre a ditadura militar e a relação passada e presente nas periferias. Tem material do CPDoc em Guaianases, do próprio Bloco do Beco, no Jardim Ibirapuera, que fazem parte dessa iniciativa.

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Matheus Oliveira

Jornalista, educomunicador e correspondente de São Mateus desde 2017. Amante de histórias e de gente. Olhar sempre voltado para o horizonte, afinal, o sol nasce à leste.

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