Buracos na via, alta dos combustíveis e casos de assédio são apontados como problemas durante o trabalho
Por: Eduardo Silva | Ira Romão
Notícia
Publicado em 19.10.2021 | 20:13 | Alterado em 13.06.2022 | 12:37
Moradora de Sapopemba, na zona leste de São Paulo, a motorista Luciene dos Santos, 36, tem cadastro em diferentes aplicativos de mobilidade urbana, como 99, Uber, Lady Driver e inDriver. Autônoma na área há três anos e meio, as corridas que ela realiza ocorrem no período da tarde e da noite – e, às vezes, durante a madrugada.
“Dificilmente trabalho de manhã, porque acho que [nos outros horários] o rendimento do carro é melhor. É melhor em valores e no lucro. Embora eu more na zona leste, procuro trabalhar no centro expandido, principalmente em horários de pico e aos finais de semana”, conta.
No segmento de corridas por aplicativo a proporção de mulheres que atuam como motoristas é baixa em comparação aos homens. Segundo a 99, as mulheres são a maior parte dos passageiros do app (60%), mas a minoria entre condutores: apenas 5%. O número se manteve estável ao longo dos anos.
Já a Uber tinha 600 mil motoristas parceiros cadastrados no país em 2020, enquanto as mulheres representavam apenas 6% desse número. A empresa não informou se houve aumento de novas condutoras nos últimos anos.
Na sétima reportagem da série sobre mobilidade nas periferias, aAgência Mural ouviu mulheres de diferentes periferias de São Paulo que atuam como motoristas.
Além de Luciene, Adriana Moraes, 30, também passou a trabalhar como motorista nas duas plataformas há um ano. Mãe de quatro crianças – um menino de 11 anos, uma menina de 8 e gêmeas de 2 anos –, ela viu nesta profissão uma oportunidade de retornar ao mercado de trabalho.
“Fiquei em casa durante a gestação das gêmeas por ser uma gravidez em que precisei ter um pouco mais de cuidados”, diz. “Assim que elas completaram um aninho, me senti preparada para trabalhar fora. Escolhi trabalhar de motorista de aplicativo porque posso fazer meu horário.”
Adriana é moradora de Francisco Morato, na região norte da Grande São Paulo, e faz corridas nos municípios de Franco da Rocha, Caieiras e Jundiaí, de segunda a sábado, das 7h às 17h. De manhã, deixa as crianças com a babá e, ao fim da tarde, encerra o trabalho antes do trânsito e do horário de pico.
“Optei por trabalhar na região de Jundiaí por conta das vias. Os asfaltos aqui em Francisco Morato são bem precários”, frisa a motorista.
“São asfaltos remendados que a própria Sabesp [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo] abre para colocar a tubulação. Depois fecha com concreto de marca muito inferior e acaba abrindo buracos nas vias.”
Mesmo com uma grande demanda de passageiros em Francisco Morato, Adriana comenta que a situação ruim das ruas gera muita manutenção no carro. “Se as vias daqui recebessem um pouco mais de atenção, organização e sinalização, seria mais fácil. Não precisaríamos nos locomover para outras cidades para trabalhar”, aponta.
Asfaltos precários e vias com buracos fazem parte das reclamações das motoristas @Ira Romão/Agência Mural
Asfaltos precários e vias com buracos fazem parte das reclamações das motoristas @Ira Romão/Agência Mural
Apesar da autonomia em escolher o próprio horário de trabalho e os locais onde pretendem embarcar e desembarcar os passageiros (recurso que é usado como atrativo pelas empresas de aplicativos de mobilidade urbana), as motoristas precisam se preocupar com outras situações, como assédio sexual e insegurança.
Luciene dos Santos conta que já passou por momentos desconfortáveis dentro do veículo. “Teve uma ocasião em que eu estava num forte declive e o rapaz perguntou se eu conseguiria sair. Respondi, com educação, que eu era motorista há muitos anos, então já deveria ter aprendido”, lembra. “Ele ficou meio sem graça, mas compreendeu que não é pelo fato de ser mulher que eu não vou saber dirigir.”
Ela também menciona casos de assédio. “Já aconteceu do rapaz no banco da frente colocar a mão atrás do meu banco, como se fosse um conhecido, a perna próxima do câmbio. Então a gente tem que aprender a cortar isso”, relata.
Na Uber, desde dezembro de 2020, as motoristas parceiras mulheres e de identidade não-binária podem optar por receber chamadas apenas de passageiras mulheres (cis ou trans) por meio da ferramenta U-Elas. Na 99, o recurso 99Mulher, disponível desde março de 2021, funciona da mesma forma.
Também existem aplicativos que são exclusivos para condutoras e clientes mulheres, como o Divas Drivers e o Lady Driver – que atualmente conta com 60 mil motoristas cadastradas e mais de 1 milhão de passageiras, segundo a empresa.
Para Luciene, ter a opção de escolher apenas passageiras traz mais tranquilidade para a corrida. “A gente já se preocupa com assaltos, com perigos na rua, então poder se preocupar com algo a menos, pelo fato de uma mulher levar outra mulher, torna a corrida muito mais leve”, diz.
A motorista Liliane Finoti, 41, moradora do município de Guarulhos, trabalha há dois anos pela 99, Uber e Divas Drive. De segunda a sexta-feira, ela faz corridas nos períodos da manhã, tarde e vai até o anoitecer. Aos finais de semana, trabalha durante a madrugada pela região da Grande São Paulo.
“Tenho família, cuido dos meus pais que são idosos e os acompanho ao médico periodicamente. O aplicativo foi uma forma que tive de conciliar todas essas minhas responsabilidades”, conta.
Ela começou a usar as ferramentas para escolher apenas passageiras mulheres após ter sido assediada durante uma corrida. “Os passageiros homens questionam muito, como: ‘seu marido deixa você trabalhar de madrugada?’. Quando eles perguntam ‘você não tem medo?’”, já causa uma certa insegurança.
Ainda assim, ela conta que o recurso não é sinônimo de segurança. “Já fui assaltada duas vezes. O primeiro assalto foi justamente com o app U-Elas [da Uber]. A passageira solicitou a corrida, mas se tratava de uma quadrilha”, lembra.
Na segunda vez, que ocorreu em um semáforo da Avenida Radial Leste, na Penha, zona leste, Liliane teve o vidro do carro quebrado. “Os apps não dão os suportes necessários a roubo e manutenções veiculares. A Uber somente lamentou o prejuízo que tive”, desabafa.
Em casos assim, há quem conte com o apoio de outros trabalhadores de apps. Adriana Moraes, de Francisco Morato, compartilha que participa de grupos de motoristas no WhatsApp, de ambos os gêneros, em que os participantes indicam onde está sendo um ponto melhor para trabalhar ou se prontificam a ajudar, se necessário.
“Se caso acontecer um acidente ou alguém precisar de um socorro, avisamos por mensagem pelo grupo e, quem estiver próximo ao amigo que está precisando desse suporte, encosta [o carro] para tentar ajudar de alguma maneira”, pontua Adriana.
FONTES DE RENDA
Maria Lúcia Martiniano, 50, atua como motorista de aplicativo nas plataformas 99 e Uber há dois anos. Moradora da Vila Joaniza, na periferia da zona sul de São Paulo, ela tira toda a renda por meio das corridas.
“Antes era uma renda extra porque eu trabalhava em um consultório odontológico. Com a pandemia, fiquei desempregada e hoje essa é a minha renda principal”, diz.
Para ela, o alto preço dos combustíveis é um dos desafios atuais para quem trabalha no segmento.
“Antigamente eu colocava R$ 100 de gasolina e dava para rodar o dia todo. O custo compensava, pois eu triplicava esse valor investido [em corridas]. Hoje não estou mais conseguindo isso”, comenta.
O mesmo vem ocorrendo com o retorno financeiro das corridas, segundo ela. “A média da condução é R$ 4,50 [por pessoa]. Muitas vezes o motorista faz a corrida com três ou quatro passageiros. Se eles fossem de ônibus, pagariam cerca de R$ 13 na condução. Já em uma corrida, pagam para o motorista R$ 7, dependendo do percurso”, lamenta Maria Lúcia.
Moradora de Itaquaquecetuba, na região leste da Grande São Paulo, a motorista Adriana Aparecida Domingues, 47, trabalha com os aplicativos há três anos. Ela circula pelo município vizinho, Arujá, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos finais de semana estende as corridas até às 23h.
Nos últimos meses, também devido ao alto preço do combustível, ela depende que as empresas do segmento disponibilizem campanhas e incentivos aos motoristas – que pagam dinheiro extra quando atingem um determinado número de passageiros transportados, por exemplo.
“Esse é um grande fator. A campanha que mais compensa, eu faço, porque é para completar o combustível. Porque se for para trabalhar no ‘seco’, sem uma campanha, sem nada, não compensa nem tirar o carro da garagem”, comenta Adriana Aparecida.
Já como ponto positivo, ela avalia bem o trabalho, pois é algo que ama fazer. “Amo dirigir e adoro fazer amizade. Sou muito conhecida em Arujá, as pessoas lá são muito educadas, gentis, então a gente faz até amizade”, conta. “Isso é bem satisfatório porque também distrai minha mente e estou numa área que gosto, que é dirigir”, finaliza.
À reportagem, as empresas dizem que prezam pela segurança das motoristas (e passageiras) antes, durante e depois da viagem. A 99 destaca que o objetivo do 99Mulher é incentivar o ingresso de mulheres no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que oferece mais segurança, e que apoia toda e qualquer iniciativa de combate ao assédio.
Também afirma que um dos destaques é o Guia da Comunidade 99. “O documento conta com um conteúdo dedicado ao combate ao assédio, trazendo dicas específicas sobre o que fazer e o que não fazer, além de quais são as medidas aplicadas pela 99 em caso de ocorrência, como bloqueio imediato do agressor e apoio às autoridades”, explica.
“A plataforma conta com uma central telefônica de emergência 24h, sete dias por semana, que responde prontamente em caso de necessidade e oferece auxílio sobre o que fazer. O telefone é o 0800-888-8999”, diz.
Segundo a empresa, no primeiro semestre de 2021, os casos graves contra motoristas parceiros no país foram reduzidos em 20% graças a investimentos em sistemas de proteção.
Já a Uber afirma que mais da metade das motoristas brasileiras que usam a ferramenta U-Elas dirigem mais durante o período da noite. Também destaca que, caso a condutora chegue ao local e a usuária esteja acompanhada por um homem ou a viagem tenha sido pedida para um homem, ela pode cancelar a corrida sinalizando esse motivo.
Em relação às medidas de segurança, a empresa dispõe de uma lista de ferramentas que são usadas para identificar usuários cadastrados e afirma que as motoristas parceiras podem acionar outros recursos diretamente no app, como ligar para a polícia em situações de risco ou emergência.
Quanto aos casos de assédio sexual no qual as mulheres podem sofrer durante uma corrida, a Uber diz que tem projetos voltados ao enfrentamento da violência contra a mulher e que, em setembro deste ano, lançou um canal de suporte psicológico para apoiar vítimas de violência de gênero na plataforma.
“Usuárias, motoristas e entregadoras que passem por um incidente do tipo em viagens ou entregas usando o aplicativo podem ser direcionadas ao canal da MeToo (organização dedicada ao acolhimento de sobreviventes de abuso sexual) após reportar o fato no aplicativo da Uber e serem atendidas pelo time de suporte do app”, escreve.
Sobre o caso da motorista Liliane que teve o vidro do carro quebrado durante uma corrida, a empresa não se manifestou.
Editor-assistente da Agência Mural. Fã de cultura pop, música, gatos e filmes de terror. Correspondente de São Miguel Paulista desde 2017.
Jornalista, fotojornalista e apresentadora de podcast. Atuou em comunicação corporativa. Já participou de diferentes projetos como repórter, fotógrafa, verificadora de notícias falsas e enganosas. Foi uma das apresentadoras do ‘Em Quarentena” e da série sobre mobilidade nas periferias. Ama ouvir histórias, dançar, karaokê e poledance. Correspondente de Perus desde 2018.
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