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Mães de crianças trans nas periferias falam sobre a importância do acolhimento e respeito

Jaciana Batista e Dulceline Vieira Rodrigues contam os desafios que passaram com os filhos na luta por direitos

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Arquivo Pessoal

Por: Caê Vasconcelos

Notícia

Publicado em 20.10.2021 | 20:16 | Alterado em 27.02.2024 | 16:52

Tempo de leitura: 6 min(s)

A autônoma Jaciana Batista, 34, precisou se mudar de Fortaleza (CE), onde morava com os três filhos e a esposa, para proteger o caçula, Gustavo Batista, de apenas seis anos de idade.

Gustavinho, como é conhecido no Instagram, é uma criança trans e a família começou a ser perseguida na cidade depois que um jornal local publicou uma matéria expondo dados sensíveis sobre eles. 

No início de 2021, ainda em pandemia, Jaciana veio morar na periferia de São Paulo, na Vila Dalva, região do Rio Pequeno, na zona oeste, para reconstruir a vida. 

Ela lembra como descobriu que o filho era um menino trans. “Quando o Gustavo tinha dois anos de idade comecei a reparar que ele rejeitava tudo o que era feminino, não gostava de nada que a gente vestia nele, nem dos brinquedos que ele ganhava”, conta.

Com quatro anos, Jaciana conta que o notava extremamente agressivo e irritado, “ao ponto de ter que levá-lo em neuropediatra e em psiquiatra”. “Fizemos exames e nada foi constatado porque ele é uma criança saudável. Não conseguia entender tanta agressividade”, explica.

Na época, ele estava matriculado em uma escola que omitia as agressões que sofria de outros alunos, o que revoltou a mãe do menino.

“Todos os dias eu perguntava como estavam as coisas e um certo dia me mandaram ir na escola para conversar. Quando cheguei lá, a coordenadora me veio com uma história que há um ano e meio o Gustavo não tinha contato com nenhuma outra criança, brincava sozinho e chorava muito.”

Isso aconteceu porque o garoto contou para um colega sobre ser trans. Desde então, segundo Jaciara, as crianças batiam nele dentro do banheiro e outras se afastaram.

A partir disso, Jaciana e a esposa foram buscar ajuda para acolhê-lo. Um dos primeiros passos foi trocar todas as roupas que não o deixavam confortável por roupas novas.

“Para mim, o Gustavo é a criança mais perfeita do mundo. A partir do momento que ele começou a ser tratado como Gustavo, ele se transformou em uma criança feliz, completamente diferente do que era antigamente.”

Gustavo Batista, 6, chegou a sofrer agressão na escola e recebeu todo o apoio da família @Reprodução/Instagram

Agora, em uma escola pública do bairro, Gustavo encontrou o apoio que não tinha até então, segundo a mãe. “Quando fui fazer a matrícula na escola, desde a direção até a coordenadora da escola, foram completamente abertos a conversar e entender o caso do Gustavo. A todo momento respeitaram o nome social dele. Eles respeitam e tratam bem meu filho.”

Ele é a primeira criança trans da escolinha e, mesmo com o acolhimento, há o receio pela segurança. “O medo da escola é que as outras famílias descubram que ele é uma criança trans. Usa o banheiro masculino, é tratado pelo nome, mas as únicas pessoas que sabem é a direção, coordenação, secretaria da escola e os professores”, completa.

Por esse mesmo motivo, a mãe não contou para os vizinhos que tem uma criança trans.

“Para a segurança dele eu optei falar só para as pessoas que eu realmente conheço e vejo que não vão colocar meu filho em perigo nenhum. Mesmo São Paulo tendo uma estrutura diferente e as pessoas tendo uma mentalidade mais aberta, o preconceito continua, então temos que saber como falar, com quem falar, porque nem todo mundo é igual.”

Em casa, Gustavo tem a companhia dos irmãos, uma menina de 13 anos e um menino de 10, que sempre lidaram bem com a transição do caçula.

“Eduquei meus filhos para respeitar as pessoas como elas são. Em casa, Gustavo sempre foi tratado como ele queria: usava as roupas do irmão, brincava com os brinquedos do irmão porque eu sempre acreditei que brinquedo não tem gênero. Eles sempre foram livres para brincar e vestir as roupas”, conta a autônoma.

Ela enfrentou uma sala inteira

No outro lado da cidade, no Parque Monteiro Soares, região da Vila Penteado, zona norte, mora a chefe de cozinha Dulceline Vieira Rodrigues, 48, mãe de Heloiza Correia, 13. 

Ela lembra, como se fosse hoje, quando percebeu que a filha é trans. “Com dois anos ela começou a apresentar características femininas e tinha muita resistência para cortar o cabelo, não gostava de jeito nenhum. Tenho outra filha de 26 anos e a Heloiza ficava encantada quando a via se maquiar”, conta.

Dulceline Vieira Rodrigues, 48, é mãe de Heloiza Correia, 13 @Arquivo Pessoal

Mas, no começo, Dulceline diz que não sabia que existiam crianças trans e achava que a filha seria gay. “Começamos a ter muitos problemas porque ela começou a ficar agressiva, começou a se cortar. Eu sofria porque não entendia o que estava acontecendo. Até que fui procurar ajuda psicológica.”

Foi uma série de televisão norte-americana, na TV por assinatura, que ajudou a chefe de cozinha a entender mais o universo de Heloiza, com 11 anos na época.

“Assisti [‘A Vida de Jazz’] sozinha e ela pedia pra assistir junto, mas eu tinha resistência”, comenta. Depois de ser orientada pela psicóloga, Dulceline conversou com a filha.

“Ela me falou que não era gay e que gostaria de ser uma menina. ‘Eu seria mais feliz’, disse. Aí eu perguntei o motivo e ela respondeu que não sabia, mas se sentia melhor com roupas de meninas e como menina.”

Após esse episódio, a mãe mandou um e-mail para o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Hospital das Clínicas, em busca de uma vaga.

E deu certo. A cada 28 dias, Heloiza toma os bloqueadores hormonais (medicamentos que impedem o desenvolvimento dos hormônios e do corpo). No começo da transição social, tudo era feito presencialmente, mas, por conta da pandemia, as reuniões passaram a ser online.

“A cada três meses ela faz os exames de sangue e uma vez por ano ela repete uma bateria de exames de acompanhamento, passando com a endocrinologista. As reuniões semanais estão sendo online no momento, toda sexta-feira, e depois da pandemia volta a ser presencial”, explica a mãe.

Dulceline não esconde que a transição de Heloiza não foi um processo fácil para ela. “Além dela ser uma menina trans, ela é negra. A gente não quer o sofrimento para os nossos filhos, mas comecei a entender que ela ficou mais feliz, que começou a se desenvolver melhor no colégio.”

Por Heloiza ser uma menina negra, a preocupação da mãe é ainda maior @Arquivo Pessoal

Ela compreendeu que o único caminho possível era o apoio, no entanto, nem sempre esse acolhimento existe fora de casa. 

A família teve problemas em uma das escolas onde Heloiza estudou. Mesmo sendo um colégio particular, se recusaram a permitir que a menina usasse o nome social. Dulceline foi atrás dos direitos e conseguiu alterar o nome da filha.

No começo do ano, porém, a escola fechou e a família procurou uma nova. Dessa vez, agora no 8º ano do ensino fundamental, ela já entrou na escola como Heloiza. No começo, ela não havia contado para os colegas que era uma menina trans, mas decidiu expor depois de um episódio de LGBTfobia que presenciou.

“Um aluno fez uma postagem preconceituosa e ela se sentiu ofendida. Foi para o banheiro e chorou muito, voltou e a coordenadora nos acolheu. Nesse dia ela entrou na aula e contou para a sala inteira que ela era uma garota trans”, conta Dulceline.

“Admiro essa força, porque ela só tem 13 anos e enfrentou uma escola inteira. A coordenadora conversou com os alunos para não mudarem a forma de tratá-la e todo mundo acolheu e respeitou.”

Atendimento no SUS

Apesar da diferença de idade, Gustavo e Heloiza ilustram a trajetória de muitas crianças e adolescentes transgêneros. A diferença é que eles foram acolhidos pelas famílias antes de chegarem à fase adulta.

Ambos fazem acompanhamento no AMTIGOS, o único ambulatório especializado em crianças e adolescentes trans na cidade de São Paulo. Todo o atendimento é do SUS (Sistema Único de Saúde).

Lá, o protocolo do Conselho Federal de Medicina é seguido à risca: nenhuma criança ou adolescente passa por terapia hormonal (aplicação dos hormônios) ou procedimentos cirúrgicos. Para crianças da idade de Gustavo, por exemplo, a única mudança é social: nomes, pronomes, roupas e cortes de cabelo.

Quando as crianças entram na puberdade (meninos trans aos oito anos e meninas trans aos nove), se inicia o uso dos bloqueadores hormonais, como é o caso de Heloiza. Somente a partir dos 16 anos a hormonização e as cirurgias são autorizadas na rede privada, e aos 18 pelo SUS.

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Caê Vasconcelos

Jornalista, homem trans e bissexual. Autor do "Transresistência" e repórter especializado em direitos humanos e na editora LGBT+. Correspondente de Vila Nova Cachoeirinha desde 2017.

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