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Léu Britto/ Agência Mural

Por: Jacqueline Maria da Silva

Notícia

Publicado em 29.01.2024 | 15:03 | Alterado em 01.02.2024 | 18:27

Com cerca 20% da sua população em idade escolar (6 a 17 anos), o distrito de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, apresenta grandes desafios e enormes potenciais quando o assunto é educação. Ao mesmo tempo que é necessário combater a evasão escolar e melhorar a qualidade do ensino, coletivos, organizações e escolas se mobilizam para transformar a experiência educativa de crianças e jovens.

A constatação vem de quem conhece bem o território e se articula em prol de mudanças. De quem enxerga lacunas e problemas, mas deseja construir um amanhã em que Cidade Tiradentes seja conhecida pela sua potência.

“Os jovens daqui, muitas vezes, são vistos como problemas. Se você pesquisar Cidade Tiradentes [no Google], vai aparecer muita criminalidade, mas não é só isso. Temos boas escolas, com pouca visibilidade. Acho que as pessoas não acreditam mais que a educação leve a gente a algum lugar, mas ela abre portas para faculdade, emprego, independência financeira e qualidade de vida”, diz a estudante Ana Clara Teixeira da Costa, 16.

“A educação abre portas pra uma melhor qualidade de vida”, diz a estudante Ana Clara Teixeira da Costa, 16
@Léu Britto/ Agência Mural

Para resgatar a credibilidade no ensino público é necessário dar visibilidade às boas iniciativas, aproximar os jovens da escola e da gestão, fortalecer sua autoestima, ouvir suas demandas e incluí-los nas decisões.

Essa é a opinião da jovem, a partir da qual tem norteado suas ações como diretora de imprensa do grêmio da ETEC Cidade Tiradentes, onde estuda o segundo ano do ensino médio integrado ao técnico em recursos humanos. Uma das pautas exitosas que conquistou junto aos alunos foi a criação de um cronograma de aulas específicas, fora da grade tradicional, a fim de prepará-los para o vestibular.

“Trabalhar autonomia desde cedo impacta no desenvolvimento e no futuro dos estudantes”, afirma Mônica de Souza Costa, 43, mãe de Ana Clara e professora da educação infantil em Cidade Tiradentes.

Há seis anos, a pedagoga trabalha valorizando o protagonismo de crianças de 0 a 4 anos por meio do brincar. “Faz parte escutar o que as crianças querem, precisam ou acham que é importante. Quanto mais a gente observa e escuta, mais podemos proporcionar espaços para elas se desenvolverem”.

Ana Clara e sua mãe, a pedagoga Mônica de Souza Costa @Léu Britto/ Agência Mural

Evasão escolar na ponta do lápis

A zona leste da cidade de São Paulo, onde se localiza Cidade Tiradentes, é a região do estado em que menos alunos matriculados frequentam as escolas estaduais de ensino médio, segundo a Diretoria Regional de Ensino da Leste III. É o retrato preocupante de um problema que se estende por todo país.

Segundo o levantamento “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil”, da Fundação Abrinq, entre 2015 e 2020, a taxa de abandono do ensino médio em escolas públicas do Brasil caiu de 8% para 2%, mas voltou a subir em 2021, alcançando quase 6%. A pandemia de Covid-19 e o agravamento da crise social ajudam a explicar os números.

Mudar essa realidade tornou-se um dos objetivos da Secretaria Estadual de Educação, de acordo com a Diretoria de Ensino. Tanto que, no último ano, o órgão criou uma força tarefa para localizar alunos que deixaram de estudar e oferecer a eles alternativas, como ampliação das classes de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Além disso, investiu em recursos tecnológicos, na realização de projetos de cultura de paz e na capacitação de jovens para inserção profissional.

“No começo de 2023, 70% dos nossos alunos frequentavam a escola e fechamos o ano com 80%. Nosso ideal é chegar o mais perto possível de 100%. Queremos todo mundo dentro da escola”, vislumbra Eric Vellone, dirigente Regional de Ensino da Leste 3.

Reduzir o problema, no entanto, requer combater a vulnerabilidade social da população que vive no território, como defende a gestora, pedagoga e professora de matemática, Viviane Soares Camara, 48. Ela morou por 20 anos em Cidade Tiradentes e trabalhou em cinco escolas do distrito. Nessa trajetória, viu com tristeza diversos alunos do ensino fundamental, médio e EJA interromperem os estudos.

“Pobreza, racismo, inserção precoce no mercado de trabalho para ajudar na renda famíliar, gestação na adolescência, abuso sexual, violência doméstica, vicios, adesão a criminalidade e falta de perspectiva são alguns dos principais motivos que afastam os jovens das aulas”, enumera.

Perfil de Cidade Tiradentes

Segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, cerca de 56% da população de Cidade Tiradentes é preta ou parda. O distrito é o mais jovem da capital, com quase 48% de pessoas entre 0 e 29 anos. A população infantil está acima da média da cidade, com mais de 10% da população composta por crianças entre 0 e 6 anos.

Atenta a estas questões, ela e duas assistentes criaram um cronograma de atendimento para alunos, pais e responsáveis da Escola Municipal de Ensino Médio e Fundamental Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, em Cidade Tiradentes, onde atuou como coordenadora pedagógica até o final do ano passado.

Trata-se, como ela define, de um “consultório escolar” que promove a escuta ativa dos jovens e suas famílias sobre os problemas que vivenciam. Em paralelo, elas se empenham em tornar o ambiente escolar mais acolhedor e os conteúdos mais atrativos aos jovens, organizando palestras e oficinas que promovam a autoestima dos estudantes a partir de debates sobre temas como diversidade, anticapacitismo e antirracismo.

“Essa questão do combate ao racismo é muito importante e não deve ser trabalhada somente em datas específicas. Ter referências negras na escola e no distrito traz representatividade, faz com que eles se espelhem em pessoas engajadas e enxerguem possibilidades no ensino”.

“Pobreza, racismo e inserção precoce no mercado de trabalho são motivos que afastam jovens das aulas”, diz Viviane @Arquivo pessoal

A desigualdade racial do ensino no Brasil é evidenciada em números. Ao todo, 75% dos jovens brancos de até 19 anos possuíam ensino médio completo em 2022, contra 62% dos jovens pretos e 43% dos pardos, percentual abaixo da média nacional, que é de 67%. Os dados são do Boletim “Caminhos para uma Educação Antiraracista”,do Instituto Unibanco.

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação, responsável pelos ensino infantil e fundamental de São Paulo, afirmou que investe em melhorias na educação por meio de projetos, entre eles o Busca Ativa e o Gratificação por Local de Trabalho.

No multiverso da educação

A poucos minutos do colégio onde Viviane trabalhava, está situado o CEU Água Azul, local cedido para funcionamento de um cursinho popular que faz sucesso entre os jovens do ensino fundamental e médio que querem ingressar na ETEC e na universidade.

O nome do projeto, por si só, já é inspirador: “Carolina Maria de Jesus”— em referência à escritora multiartista que veio da favela. “Ela usava a escrita como fuga e para mostrar as dificuldades que enfrentava. Isso que a gente quer: usar a educação como superação de problemas da nossa sociedade”, explica a moradora de Cidade Tiradentes e uma das coordenadoras do cursino, Verônica Asbel Pires, 20.

“Uma parte dos alunos consegue ingressar [na universidade] por meio de programas sociais. Na ETEC temos 100% de aprovação”, diz a jovem, estudante de licenciatura em química e professora voluntária de ciências.

Alunos do cursinho em atividade externa

O segredo não está apenas no conteúdo, mas nas perspectivas que o ensino traz aos jovens. Os professores promovem feiras de profissões e rodas de conversa sobre assuntos urgentes da atualidade, como saúde mental, LGBTfobia, racismo, machismo e capacitismo, além de articular bate papos com referências periféricas, como o Chavoso da USP.

“Quando a gente faz excursões [para universidades], vejo o quanto eles ficam deslumbrados. Fazemos isso para mostrar que são capazes de estar ali e que devem ocupar a universidade, que é um espaço público que pertence a eles. É dever do Estado garantir esse direito. É importante existir o cursinho para mostrar essas possibilidades”.

Um coletivo “Pika”

Quando o assunto é fortalecer e melhorar a qualidade do ensino, o trabalho dos coletivos de cultura é fundamental. E Cidade Tiradentes está repleto deles.

Um levantamento feito pela Agência Mural na plataforma SP Cultura levantou pelo menos 39 coletivos em Cidade Tiradentes. Mas quem integra os grupos garante que o número é maior, pois muitos não estão cadastrados.

Um deles é o Pikadilha, núcleo formado por jovens de 15 a 20 anos que educam outros jovens politicamente na luta por direitos. A principal ferramenta deste processo é a arte.

“Somos um coletivo periférico formado por pessoas jovens, pretas, LGBTs, que vivem uma realidade parecida e mostram essa luta de forma artística, algo que movimenta a juventude”, define Maria Eduarda dos Santos Yokota, 18, fotógrafa autônoma e social mídia, que atua na organização e planejamento das ações.

Integrante do Coletivo Pikadilla em atividade cultural @Arquivo Pessoal

O Pikadilha foi criado em 2022 com o nome de “Artivistas Culturais”, a partir de uma parceria entre o programa Pombas Urbanase a Unicef.De lambe-lambe em muros e intervenções artísticas até reuniões em partidos políticos, o Pikadilha mobiliza pautas ligadas à educação, diversidade e até melhorias da infraestrutura do bairro.

“O presidente sancionou uma lei que prevê a construção de dois Institutos Federais em Cidade Tiradentes. Nós tivemos participação nessa conquista. Fizemos mobilizações em prol da construção de um deles, na favela Vila Yolanda, para melhorar o acesso das pessoas periféricas ao ensino”, diz Maria Eduarda. “Essa instalação exigirá mais conectividade, alargamento das ruas e outras linhas de transporte.”

Apesar das conquistas, eles seguem mobilizados, em especial pelas demandas que não são ouvidas, como a reivindicação pela melhoria da linha de ônibus 3064, que vai do extremo de Cidade Tiradentes ao terminal rodoviário do bairro. A carta enviada à SPtrans detalhando a presença de baratas, bancos quebrados, portas sem fechar nos veículos nunca foi respondida.

A gíria “Pika” é muito usada nas quebradas para se referir a algo “legal”.

Desistir não é uma alternativa para o coletivo, que traz o gás de uma juventude que luta por melhorias não só para Cidade Tiradentes, mas para todas as quebradas de São Paulo.

“Estudar geografia, história é muito bom, mas discutir sobre como a política interfere na nossa geografia e na nossa história é também uma forma de educação, que sensibiliza muito. A gente consegue entender como e por que a nossa sociedade é tão desigual”.

Cinco coletivos que atuam pela juventude de Cidade Tiradentes

1

ACADEMIA CAROLINAS: coletivo criado durante a pandemia para diminuir a desigualdade social por meio de projetos para crianças, jovens e mães em situação de vulnerabilidade.

2

COMPANHIA DOS RATOS: coletivo teatral que promove intervenções artísticas com crítica social e política em diversas casas de cultura e equipamentos públicos de São Paulo.

3

KILOMBO CULTURAL: loja colaborativa 100% administrada por mulheres pretas, fortalecendo empreendedoras jovens de Cidade Tiradentes.

4

LOVE C.T.: coletivo que há 10 anos realiza projetos para  inclusão social de crianças e adolescentes por meio do skate e esporte.

5

POMBAS URBANAS: grupo teatral que atua em Cidade Tiradentes há 34 anos e desenvolve projetos culturais, artísticos e de economia criativa, além de ser uma referência na articulação e outros coletivos da região.

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Jacqueline Maria da Silva

Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.

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