Léu Britto/ Agência Mural
Por: Jacqueline Maria da Silva
Notícia
Publicado em 30.08.2023 | 17:14 | Alterado em 31.08.2023 | 11:44
Organizações internacionais, especialistas em saúde e agências sanitárias do Brasil e do mundo concordam em uma recomendação: bebês devem ser amamentados exclusivamente até pelo menos os seis meses de vida, já que essa prática garante saúde à mãe e à criança. O consenso é tanto que o Ministério da Saúde brasileiro designou um mês especial do ano para incentivar o aleitamento materno, o Agosto Dourado. Mas quem realmente tem direito de amamentar?
Apesar de a prática ajudar a prevenir patologias nas crianças, como infecções respiratórias e gastrointestinais, ela ainda é um privilégio. Em geral, mulheres e crianças brancas são as que mais têm garantido o direito de amamentar, enquanto as mulheres negras são as que encontram mais dificuldades em seguir oferecendo leite materno para os bebês.
A situação é tão crítica que integrantes do movimento de direitos das mulheres negras criaram a Semana de Apoio à Amamentação Negra, que ocorre entre 25 e 31 de agosto, neste ano em sua quarta edição. A data reforça que o racismo impacta diretamente no acesso dessas mulheres às políticas de saúde e de amamentação.
Bom para a saúde
A amamentação reduz índices de mortalidade infantil, protege contra desnutrição e doenças infecciosas e diminui riscos de obesidade, hipertensão e diabetes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os bebês sejam alimentados exclusivamente com leite da mãe até os seis meses e depois sigam com o alimento de forma complementar até pelo menos os dois anos.
São histórias como a da manicure Carla França Caetano, 26, do Rio Pequeno, na zona oeste da capital paulista. Ela não conseguiu amamentar exclusivamente sua segunda filha, Flora, 2, por seis meses, como o recomendado por especialistas. Isso porque teve que arrumar um trabalho apenas dois meses após o parto, como manicure, para garantir o sustento da família.
Sem renda para comprar fórmulas infantis, ela foi obrigada a oferecer à criança leite integral com engrossante, até o quinto mês. “Eu sabia que poderia fazer mal para ela, mas era como conseguiria alimentá-la. Foi difícil porque ainda ouvia coisas como ‘você vai matar essa criança”.
O caso não é isolado. Entre as crianças menores de 6 meses, apenas 13,2% recebiam o leite materno como principal alimento no Brasil em 2019. Desse grupo, bebês pretos eram os menos amamentados, apenas 5,6%, segundo o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, de 2019. Na sequência vem os bebês pardos (12,7%) e brancos (14,6%).
Quando se fala em amamentação nas primeiras horas de vida – fundamental para reduzir contrações uterinas, diminuir o risco de hemorragia e fortalecer o vínculo afetivo entre mãe e filho – as mulheres e crianças negras novamente aparecem em desvantagem. Entre todos os grupos raciais do Brasil, elas foram as que menos amamentaram na primeira hora, apenas 58,4%. Já entre as mulheres brancas, esse percentual chegou a 61,7%.
A estudante Ingrid Lohany Santana Santos, 17, do Jardim Varginha, zona sul, foi uma das mães negras que não conseguiu amamentar o bebê durante a primeira hora de vida dele, devido aos efeitos do parto cesariana. E este foi só um dos desafios que encontrou para dar de mamar.
Logo que descobriu a gravidez, ela foi morar com o namorado, Jorge, 15, e passaram a viver com auxílio de terceiros e do Bolsa Família. Há cerca de um mês, os dois arrumaram um trabalho, ainda que informais, para arcarem com as despesas da casa e da filha, a Mayte, de 5 meses. Hoje, Ingrid é recepcionista em uma escolinha de futebol e Jorge trabalha lavando carros.
Por conta da rotina de estudo, trabalho e treinos no futebol de várzea, retomados após os quatro meses de licença maternidade, Ingrid não consegue seguir a amamentação exclusiva. Parar totalmente o aleitamento, porém, não é uma opção para ela. “Eu vou continuar amamentando, porque o leite do peito é muito bom. [Os especialistas] falam que é bom para imunidade, ela nunca ficou doente”, acrescenta.
A percepção de Ingrid sobre a importância do leite da mãe é também um consenso da ciência e dos profissionais de saúde há muitas décadas.
“A amamentação é tão importante quanto a vacinação, porque o leite materno é tido como a primeira vacina que esse bebê recebe”, diz a psicóloga especialista em relações étnicos raciais e amamentação negra, Fernanda Lopes Sanches, 40. Foi ela, junto com a pediatra Tiacuã Fazendeiro, que trouxeram para o Brasil a Semana de Apoio à Amamentação Negra, inspirada na americana Black Breastfeeding Week (Semana de Amamentação Negra), criada em 2021.
O nível de ocupação de mulheres pretas e pardas com crianças de até três anos é menor em relação às brancas. A cada 10 mulheres negras com crianças entre 25 e 49 anos, menos de cinco estão inseridas no mercado de trabalho, segundo dados do IBGE, de 2019.
A maior parcela de mulheres negras chefe de família com filhos trabalham no setor de serviços doméstico (25%), boa parte sem carteira assinada (20,6%), segundo o Boletim Especial Dia da Mulher do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), divulgado no primeiro semestre deste ano.
A ausência de informação sobre aleitamento materno e a falta de acompanhamento profissional das mães negras para amamentação afastam mulheres e crianças de um dos atos mais naturais, saudáveis e idealizados da maternidade.
É o caso de Ingrid, que não recebeu orientações precisas sobre o assunto e passou a adotar hábitos saudáveis, por conta própria, como comer alimentos saudáveis. A única conversa que teve sobre amamentação com um profissional de saúde foi logo após o parto, de forma pouco precisa e pouco individualizada. Ela considera que teve “sorte” pelo fato do seu organismo ter se adaptado à amamentação, um processo que pode ser bastante desafiador para algumas mulheres.
Carla também não recebeu orientações suficientes quando teve sua primeira filha, Eloá, 6, e não conseguiu amamentá-la. Os médicos atribuíram a dificuldade às feridas que desenvolveu na mama, embora ela insistisse que esse não era o motivo.”Eles demoraram para perceber que ela havia engolido líquidos durante o parto e fizeram uma lavagem. Perceberam porque ela não estava mamando no meu peito e nem aceitava outro tipo de leite em outro recipiente. Só aí eles foram analisar”, conta.
Na segunda gravidez, novamente, ela sofreu com falta de informação e atendimento inadequado, pois passou mal durante os nove meses de gestação. “Eles [profissionais de saúde] nunca davam uma solução, diziam que era normal, mas eu chegava a um ponto de não conseguir comer e vomitava sangue. Não tinha como isso ser normal, mas para eles não era só um enjoo”, detalha.
Esses são sinais de uma situação já conhecida entre quem acompanha políticas públicas para mulheres negras: elas são as mais privadas de acesso aos serviços de saúde. “É porque nós somos a maioria na periferia, né? É a minha realidade e a realidade de pessoas próximas de mim. A gente quase não tem apoio e normalmente temos que nos virar sozinhas”, complementa Carla.
É uma realidade que é traduzida em números. Para se ter uma ideia, em 2021, pelo menos 72% das mulheres pardas e pretas tiveram pré-natal inadequado, três vezes mais do que mulheres brancas (22,6%), segundo dados do Boletim Epidemiológico de 2023, do Ministério da Saúde.
Vale reforçar que os bebês negros são um dos principais afetados pela falta de assistência pré-natal, tanto que, em 2021, 62,3% das mães pretas e pardas tiveram bebês com baixo peso, enquanto entre as mulheres brancas esse índice ficou em 32,2%. Neste mesmo ano, 62,1% das mulheres pretas e pardas tiveram filhos prematuros, contra 32,4% das brancas.
Todas as pessoas ouvidas nesta reportagem, de mães a especialistas, concordam que a assistência para mães negras passa pelo acesso a direitos públicos que facilitem o cuidado e aliviem a sobrecarga materna, como a disponibilidade de vagas em creches com período estendido.
“Tudo sou eu: levo as crianças para escola, cuido, dou conta das despesas…”, conta a manicure Carla, que após se divorciar do marido voltou a morar com a mãe para conseguir se sustentar e ter auxílio nos cuidados das crianças. Hoje, sua rede de apoio são os irmãos mais novos de 16, 11 e 10 anos, de quem ela mesma cuidou quando adolescente.
Por isso, a especialista em aleitamento materno Fernanda Lopes acredita que o suporte às mães negras, que ela chama de “aquilombamento” é imprescindível para fortalecer a autoestima e a identidade dessas mulheres.
“A gestação, assim como a amamentação, é um momento singular para cada mulher, mesmo já tendo passado por outras gestações. O período exige muito da saúde mental da mãe, ainda mais da mulher negra, com as questões raciais estruturais que atravessam esse cuidado”, diz.
Alguns mecanismos já têm sido pensados para apoiar as mulheres negras, como a instalação, pelo Ministério da Saúde, de salas de amamentação em Unidades Básicas de Saúde (UBSs). A ideia é que mães trabalhadoras possam ir ao local, no intervalo do trabalho, para retirar e armazenar leite e receber apoio para seguir amamentando.
Atualmente, existem mais de 400 UBSs espalhadas pela capital paulista, a maior parte nas periferias. “A ideia é que não seja só uma sala de amamentação, mas de apoio, com um profissional capacitado para prestar essa assistência. Ainda pensando que [as salas] estarão na periferia, isso pode democratizar o acesso, porque consultoras de amamentação são só particulares. E quem pode pagar uma hoje?”, questiona Fernanda.
Porém, ela reforça que o mais importante é que a sociedade assuma o compromisso de combater o racismo na assistência à saúde, para garantir um futuro melhor para o bebê, a mãe e para o conjunto da população.
“É sobre como olhamos para a amamentação e não deixamos ninguém para trás. É centralizar a política nacional integral de saúde da população negra no racismo e não virar um assunto acessório. As questões raciais da amamentação não podem ser um compromisso que acontece de 25 a 31 de agosto”, finaliza.
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World
Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.
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