Por: Paulo Talarico
Crônica
Publicado em 15.10.2019 | 11:52 | Alterado em 22.11.2021 | 17:03
No Dia do Professor, contamos um pouco da história de como um professor marcou uma geração com bordões e a amizade para ensinar matemática
Tempo de leitura: 4 min(s)“Ah, ôô sala ruim”.
O ano era 2004. De barba grossa, cabelo grande e jalecão branco, Maurício entrava na sala de aula para ensinar matemática a um dos mais difíceis seres humanos dessa terra: os adolescentes da oitava série.
Era ali na escola estadual Américo Marco Antônio, conhecida como Pestana, bairro de Osasco, na Grande São Paulo, que o docente passava as tardes explicando equações do segundo grau, porcentagem, catetos e hipotenusas. Tarefa que parecia fácil com sua voz de trovão e os melhores trocadilhos da história da disciplina.
Parece exagero, mas é como nós que estudamos naquele período nos recordamos desse professor e pode perguntar para qualquer um no Facebook ou do falecido Orkut se é mentira.
A primeira diferença era o apelido que ele mesmo abraçou. Malditão. Quando ele passava problemas para calcularmos muitos deles começavam o enunciado da seguinte forma. “A Malditão S/A comprou 100 cadeiras por R$ ….”
Malditão era um exemplo excepcional, numa escola que tinha outros ótimos professores, mas alguns não tão bons, e vivia os problemas de um colégio público da periferia.
Éramos terríveis. Já vi jogarem um fósforo no cabelo de uma professora. Também foi ali que uma educadora de inglês, talvez desanimada com a profissão, deu uma prova em que as respostas estavam na própria folha, de cabeça para baixo. “Como faz a prova, professora?”, uma aluna provocou. “Sério que você está perguntando?”.
Tinha a professora que queria processar a gente por causa da bagunça e um único professor de Educação Física que ensinou várias modalidades esportivas (e a gente reclamou muito injustamente com ele, porque queríamos só jogar bola, nessa cabeça difícil de quem tem de 11 a 14 anos). Também aprendi taboada na marra – castigo para todos os alunos de uma professora da 5ª série.
Mas esse tipo de problema não era empecilho para Malditão. Parecia fácil para ele ensinar. Foi um ano que dificilmente alguém disse não gostar de matemática. Para chamar a atenção dos alunos para as difíceis contas que tínhamos pela frente, ele tinha músicas, bordões e paciência.
Era o caso de explicar como é que você soma e subtrai números positivos e negativos. Para eles fica a dica: “SINAIS IGUAIS, SOMA E CONSERVA SINAL”. Mas cantadinho, para sala inteira seguir. “Sinais difERENTES, subtrai e conserva si-nal-do-maior”.
De todas as canções que ecoavam pelos corredores do Américo Marco Antonio, para mim a mais famosa era para fazer as contas em frações e encontrar o tal do MMC. “Di-di / Di-di / Divide embaixo, multiplica em cima”.
Cada uma delas recitada pausadamente. Tinha o chuveirinhôô e outras que não dá para recordar. E tinha ainda o incentivo.
Quando ele perguntava para a sala quanto era uma conta, e os alunos acertavam, vinha o elogio para a escola inteira ouvir: “Aaaah, ôôô sala boa”. Mas também vinha a bronca quando ninguém fazia ideia da soma dos catetos. “Aaaaah, ôôô, sala ruim”.
“E mais com mais?” “É mais”. “E mais com menos?” “É mais”. “Não. É MENOS, ah ôôô sala ruim”.
Maurício era preocupado com o futuro dos alunos. Ele ainda dava aula em uma escola particular no centro de Osasco, a Fernão Dias, onde também era adorado. Quando estávamos no final da oitava série, ele conversava com a gente sobre fazer uma prova para tentar uma bolsa de estudos em outro colégio em Osasco.
Ele nos deixava ciente de como, infelizmente, um colégio pago dá mais oportunidades para a vida que viria pela frente.
Alguns seguiram o conselho. Não foi meu caso. Acabei seguindo por ali no período noturno e perdi o contato com este professor que era também amigo dos alunos. Mas tinha limites.
Uma vez, um colega pegou o diário de notas para provocá-lo e jogou no chão. Nunca o vimos tão enfurecido. “A amizade acabou. Acabou. Agora é professor e aluno”. Mas passaram algumas semanas e tudo voltou a ser como era. Ele tinha um coração bom. O colega também.
Malditão não falava muito de política, exceto se provocado. Certo dia, um aluno reclamou que a escola estava com problemas e inflamou um discurso. “Você sabe por que isso acontece? Por que seus pais não reclamam. Sabe por que a rua tá esburacada? Porque ninguém protesta. Continua tudo desse jeito, porque ninguém fala nada”.
O tom foi crescendo e a sala aflorou com os gritos de Malditão para o governo. Empolgado, ele foi até a porta e gritou para todo o corredor: “Eu vou para os braços do povo”. Não tenho certeza o quanto os professores vizinhos gostavam desses momentos, mas era demais.
Foi assim que a oitava série (ano difícil, quando o bullyng já era pesado, quando as incertezas sobre a passagem para a vida adulta vão se intensificando), que a escola teve um respiro e um aprendizado.
Malditão morreu em dezembro de 2013 e faltou conversar com ele sobre como a vida passou, sobre o quanto ele foi importante para a minha formação, assim como outros professores que levavam a sério aquela garotada do Pestana. A todos estes, celebramos o Dia dos Professores. E, em especial, a este professor Maldito.
Para nós, fica a memória e um grito que ele gostava para o começo da aula para seguirmos em frente. “Vamos à luta, filhos da… pátria”.
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Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
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