Thalita Monte Santo/Agência Mural
A Agência Mural percorreu os 2 km da via, e ouviu histórias dos moradores da avenida que corta dois bairros na zona norte da cidade
Por: Cleber Arruda | Thalita Monte Santo
Notícia
Publicado em 10.12.2019 | 14:47 | Alterado em 22.03.2022 | 18:53
Conheça a história dos moradores e o perfil da via que corta dois bairros na zona norte da cidade
Tempo de leitura: 9 min(s)Dos prédios luxuosos aos conjuntos habitacionais e residências comuns, a avenida dos Direitos Humanos é marcada por histórias de lutas sociais, tragédias e amores.
Encravada entre os bairros Imirim e Lauzane Paulista, na zona norte de São Paulo, a via com 2 km de extensão ganhou este nome há quase 30 anos.
A menção faz referência ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado nesta terça-feira (10/12), data em que a Assembleia Geral das Nações Unidas oficializou, em Paris, no ano de 1948, a declaração que homenageia o empenho de todos os cidadãos defensores dos direitos da pessoa humana.
Na capital, a avenida dos Direitos Humanos também tem um histórico de luta, ao mesmo tempo em que vive as contradições da capital – moradores separados por muros de um residencial, pessoas que vivem na rua, enchentes que marcaram a história de quem vive ali e a reivindicação por novas moradias.
Por outro lado, moradores ouvidos pela Agência Mural disseram estar satisfeitos com a infraestrutura do bairro, apesar da reclamação com o trânsito intenso.
Caracterizada, principalmente, pelos diversos comércios voltados ao setor automotivo, como oficinas, borracharias e lojas de peças e automóveis; a avenida tem suas praças bem cuidadas e opções de transporte público para diversas regiões da cidade. Há 14 pontos de ônibus que cruzam toda a sua extensão.
Nosso ponto de partida para contar a história da avenida é a praça Joaquim Janota Filho, onde a via começa cruzando com a Avenida Engenheiro Caetano Álvares. O primeiro morador dali é Alan Sterban, 51, que se abriga na praça há cinco anos em uma barraca de lona azul, mas já está no bairro há mais de 15.
No entorno, em meio às árvores, uma decoração natalina, feita por ele mesmo, chama a atenção. Sterban trabalha como reciclador e vive com Nino, um vira-lata caramelo manso e esperto, que foi abandonado.
Mais à frente, em uma casa verde de três andares, com duas entradas diferentes, entre as avenidas Engenheiro Caetano Álvares e Imirim, a dona de casa Silvana Pereira de Gouveia, 60, nos recepcionou sorrindo. “Vocês encontraram a moradora certa. Minha mãe foi a segunda moradora aqui do bairro e aqui surgiu a escolha do nome da avenida”, disse Silvana.
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
Decoração de Natal feita por Alan, que vive na Avenida Direitos Humanos e é reciclador @Thalita Monte Santo/Agência Mural
A mãe de Silvana é a policial aposentada Wilma Paschoa Gaudêncio de Gouveia, 75. No terceiro andar, ela escolhia produtos de beleza em um catálogo de revista, numa mesa onde era servido um café da tarde à revendedora.
Na rua, a apelidaram de Erundina, ex-prefeita da cidade, “por estar sempre atenta e observando irregularidades na região.” Foi justamente durante a gestão de Luiza Erundina que a avenida virou Direitos Humanos.
Wilma se recorda da época em que a via ainda era rio e conta que, por meio do Centro de Defesa dos Direitos Humanos 10 de dezembro, do qual fazia parte. Ela e outros moradores reivindicavam melhorias para o bairro.
“Mesmo depois da canalização, a enchente continuou, porque a avenida foi virando e dava de encontro com o rio. A água voltava de lá e todas as casas eram afetadas pela enchente”, explica Wilma.
Foi, inclusive, o Centro que solicitou, por meio de carta datada, a mudança do nome da via. A mudança foi proposta pelo vereador Aurelino de Andrade, por meio da lei 500/89. Apesar do nome ter surgido em 1989, só um ano depois o projeto foi sancionado pela prefeita. Antes, o local se chamava Avenida de Fundo de Vale, segundo o Dicionário de Ruas da prefeitura de São Paulo.
Na outra ponta da avenida, encontramos a Vilma Luiza Malara, 61, aposentada e estudante de Recursos Humanos, que mora desde a infância no local. Assim como a Wilma do Imirim, ela foi apresentada como referência de moradora antiga da via por um parente.
Ambas possuem histórias e boas lembranças da época em que um rio dividia as casas e boa parte dos terrenos eram fazendas. Elas também têm em comum a lembrança das diversas enchentes que levaram móveis, documentos, fotos e até pessoas.
“Um dia eu cheguei de viagem e deixei as malas no chão. Todo mundo tinha saído, só tinha ficado eu e meu pai. Daí eu pisei no chão e senti a água. Minha mãe já havia trocado os móveis todinhos, foi a primeira enchente que deu. Aí, depois de um tempo que começaram a arrumar a rua ela não encheu mais”, afirma Vilma Luiza.
“Nós ficávamos no segundo andar de casa. A água vinha para dentro, perdemos móveis e lembro do meu pai colocando a porta como ponte para nos resgatar”, conta a comerciante Rosemeire Silva Moraes, 33, moradora há mais de 25 anos no bairro.
VISTA DA AVENIDA (Google Earth)
Uma das histórias que mais marcam a luta por direitos humanos na região é a da baiana Marieuda Trindade Oliveira Ribas, 77.
A artesã foi uma das líderes do movimento por moradia que resultou na construção do Cingapura, um conjunto imponente de prédios verdes na avenida.
Na frente do conjunto habitacional há uma barraca de frutas, onde nos indicaram Marieuda e seu endereço. Ao batermos em sua porta no bloco 6, nos apresentamos à senhora com roupas estampadas em cores vivas que logo nos acomodou em seu sofá da sala.
Depois de perder o marido e um filho de sete anos, em Várzea Nova, na Bahia, Marieuda, que já havia morado na zona leste de São Paulo, voltou para capital e passou a morar em uma vaga de pensão em Santa Cecília. Não estava satisfeita e conheceu a região no Imirim por intermédio de um cunhado, em 1981.
“Aqui era uma favela e eu caí aqui de paraquedas. Quando cheguei aqui pedi ajuda a Deus para trabalhar por mim e pelo povo, passei a acompanhar duas moradoras nas lutas por nossa morada”, conta.
Ela lembra quando assistentes sociais vieram para retirar a população dali, sem proposta de realocação e as enfrentou. “Bati o pé. Ficamos aqui batalhando, íamos em todas as reuniões e se era para ir para Brasília, eu ia. Aqui, queriam construir uma área verde. Na verdade, tinham rixa com o pessoal da favela, queriam mesmo era tirar o povo daqui e eu os enfrentei”.
Depois de anos de reivindicação, o conjunto habitacional foi construído para 160 famílias. Foram oito blocos e 20 apartamentos cada.Marieuda conta que outras 20 famílias foram alocadas em moradias prontas em Perus, na região noroeste da cidade.
“Ninguém ficou à toa, sem moradia. E não acho o Morumbi melhor que esse aqui não”, compara.
Não esquece de citar os nomes de Lídia e Maria. As duas mulheres a acompanharam na trajetória dos embates pela moradia. Também mostra orgulhosa o certificado em seu nome que ganhou em maio de 2008, no 175º aniversário do Imirim, com a homenagem “Mulheres que fazem a história do bairro”, da Câmara Municipal.
Apesar das conquistas, Marieuda, que é evangélica e sempre fala em Deus, diz que ainda pretende voltar à Bahia para travar novas batalhas. “De vez em quando eu volto. Tenho vontade de ir embora, se Deus preparar. Quero ajudar meu povo lá. Tem parte lá muito sofridas. Precisa de alguém que dê um empurrão e, se Deus quiser, ainda terei essa força”.
Encontrar moradores para conversar no Cingapura é tranquilo, comparado a falar com alguém do luxuoso condomínio Family Santana, a poucas quadras de distância. Ali, não é possível bater nas portas, nem mesmo abordar os moradores que entram em carros luxuosos e são recepcionados pelo segurança na entrada.
Na frente do ostensivo edifício, atenta à tela do celular, estava Talita Nogueira, 40, administradora e estudante. Ela perguntou se seríamos breves e dispensou ser fotografada. Nos poucos mais de quatro minutos de conversa, foi simpática e disse morar há cinco anos no endereço. Considerou de forma positiva a acessibilidade do bairro e disse não se incomodar com as visíveis diferenças sociais que compõem a vizinhança.
“Não acho que tem que ser separado, segregado, não vejo problema. Aqui tem acesso a tudo, tem o shopping e várias coisas por perto”, diz. Como ponto negativo, criticou o trânsito. “Principalmente nesses horários de pico, o trânsito é um pouco mais chatinho, nas manhãs, finais de tarde”, avaliou.
Foram exatamente por conta dos problemas de trânsito da avenida que uma tragédia mudou o destino do pai da sua xará, a auxiliar de cabeleireira Talita Lima, 31, que mora na Direitos Humanos desde 1997.
“O único problema aqui da avenida é a velocidade dos carros, faz uns dois anos que meu vizinho morreu por causa dos rachas, que aqui acontecem com frequência. E meu pai, este ano, no dia 18 de maio, morreu atropelado também, em frente de casa”, conta.
Atualmente, ela ajuda a administrar a borracharia do marido, na garagem da sua casa, onde moram com suas duas filhas. É no sofá nos fundos do estabelecimento que ela nos recepcionou com atenção. Desde a infância mora no bairro e está ciente das diferenças sociais no bairro.
“É bem diferente, mas se vive bem. Você pode ver que no começo da avenida tem o pessoal do Cingapura, aqui no meio o pessoal mais parecido comigo. E alí em cima, na altura do shopping, uma galera de nível mais elevado”, compara. “Chega um final de semana e você se pergunta: o que eu vou fazer? Ah, vou na praça. Eles dizem: ah, vou para a Disney. Então nesse ponto é bem diferente”, diz.
Um detalhe curioso de parte da Avenida, próximo a casa de Talita, é que um muro separa algumas residências do restante da via. O Rede (Residencial Santa Terezinha) tornou-se uma vila fechada pelos próprios moradores, segundo alguns entrevistados.
Apesar do pequeno histórico de separação de pessoas com a construção do muro, a Avenida Direitos Humanos também uniu casais. A auxiliar de cabeleireiro Talita, por exemplo, se casou com um vizinho. O pedido foi feito na própria avenida.
“Ele trabalhava aqui no lado, eu tinha nove anos e ele era mais velho. Meu pai trabalhou muito com o avô dele. O tempo passou e agora a gente está aí, há 14 anos (casados), com duas filhas e continuamos na avenida”, brinca.
Assim como Talita, a caixa Jakeline Tenório dos Santos Silva, 18, também encontrou o amor na avenida. A jovem trabalha há dois anos na padaria Nova Direitos Humanos; lá conheceu o ex-militar Vitor Silva, 20, e pouco tempo depois foi surpreendida.
“Ele veio me pedir em namoro aqui, de joelhos com um buquê de flores, durante o expediente, com ajuda da minha gerente. Foi muito lindo. Em um ano, casamos e agora estou morando há três meses e trabalhando aqui”, conta.
Jakeline morava em Guarulhos, na Grande São Paulo. Agora no novo endereço, em um dos prédios do Cingapura, há três meses, se diz feliz com a infraestrutura do bairro e o fato de trabalhar a poucos passos de casa. “Posso dormir até mais tarde. Aqui é um lugar bacana para morar, é perto do Shopping e tem tudo perto”.
O ex-funcionário público Carlos Henrique Bononi, 46, não se arrepende de ter trocado a zona leste pela Direitos Humanos. Ele se mudou para a zona norte, onde morava a esposa. Também ali montou seu próprio negócio: o Paraíso da Cachaça.
“Trabalho com cachaça artesanal como hobbie há mais de 20 anos. Sempre gostei de cachaça; é um produto 100% nacional, mas que era pouco conhecido quando comecei”, conta Bononi, que diz ter começado com a loja no local.
Com o tempo, ele passou a oferecer petiscos e trabalhar com cervejas artesanais. Um bolinho de carne com a receita adaptada da sua avó é o carro-chefe da casa, com uma decoração especial.
Em uma das paredes há uma exposição de artefatos e equipamentos eletrônicos antigos pendurados, como celulares, fitas cassetes, máquinas fotográficas, controles de video-games, entre outros.
“Gosto muito de antiguidade e uso esse espaço para mostrar para as novas gerações que não conhecem metade do que tem aí”, conta.
Sobre a escolha da região para montar o negócio, ele diz não se arrepender. “O desafio é que é diferente porque tem que chamar o público para atravessar a ponte para cá, mostrar que não precisamos ir para região central encontrar boas opções, mas tem funcionado”, diz.
Caminhando pela Direitos Humanos percebemos que ela encontra-se em reforma. A ciclofaixa que segue por parte dela está apagada e, curiosamente, divide o corredor por onde os ônibus passam.
Segundo a Secretaria Municipal das Subprefeituras, as obras de recapeamento na Avenida Direitos Humanos começaram em novembro deste ano. Elas têm prazo de conclusão em até 120 dias e as intervenções são feitas em trechos por toda a extensão da via.
Já a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes e a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) informam que será agendada uma vistoria no local para verificar as condições da via e da ciclofaixa. Além disso, os detalhes das novas conexões e outras requalificações serão apresentadas no Plano Cicloviário.
*Texto alterado. Apesar do projeto de lei que pedia a mudança para o nome de Avenida Direitos Humanos ter sido apresentado em 1989, a rua só foi oficializada em dezembro de 1990, há 29 anos.
Cofundador, correspondente da Brasilândia desde 2010 e editor em projetos especiais. É jornalista do Valor Econômico e voluntário do projeto Animais da Aldeia. Canceriano, gosta de cachorros e de viajar por aí.
É jornalista e UX Writer. Já fez parte da equipe de redes sociais, do #RolêNaQuebrada e do No Fluxo. Correspondente da cidade de Guarulhos desde 2015.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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