Por: Ira Romão
Notícia
Publicado em 04.02.2020 | 16:33 | Alterado em 08.02.2020 | 0:19
Espaço Jefferson Gonçalves homenageia morador que morreu em alagamento em 2018; local tem recebido atividades para crianças
Tempo de leitura: 4 min(s)Cores sortidas nas muretas, mudas de plantas recém-plantadas em jardineiras de concreto, caixotes repletos de livros e a vontade de transformar o local onde vive há mais de duas décadas.
Foi assim que Índia Mariano, 48, iniciou o “Espaço Comunitário Jefferson Gonçalves”, no dia 13 de outubro de 2019, na Vila Inácio, no distrito de Perus, na região noroeste de São Paulo.
O espaço foi idealizado após a enchente da noite de 18 de dezembro 2018, quando morreu Jefferson José Gonçalves da Silva, 27. Natural de Landri Sales (PI), ele vivia no bairro e foi arrastado pelas águas do córrego.
Quase um ano depois, Índia dava um novo sentido ao local que fica em cima do Córrego Laranjeiras, na Travessa Tabuleiros de Valença, com a ideia também de homenagear Jefferson. Antes, a área era utilizada como um dos acessos para a garagem de Airton Cypriano, morador que decidiu fechar a entrada após a enchente.
Ao longo de 2019, obras de limpeza e desobstrução das galerias do córrego foram feitas pela prefeitura e pela AutoBan (parte do córrego e das galerias fica embaixo do km 27 da Rodovia Bandeirantes). Segundo a moradora, há décadas não havia manutenção e, mesmo após reparos, rastros de destruição ainda ficaram.
“Queria apagar aquela marca [da enchente], mas sem deixar cair no esquecimento o fato. Trazendo beleza e cores para a vila. E a alegria que só as crianças têm”, explica Índia, que mora a poucos metros do local.
Incomodada com o cenário “horroroso” e “sem cor”, ela teve a ideia de revitalizar o espaço e disponibilizar o acesso das crianças à leitura. Dona de casa e com ensino fundamental incompleto, Índia quer voltar a estudar este ano e sempre gostou de ler.
“Com um livro na mão você é pirata, princesa, investigador, médico. Podemos ser tudo num livro”, defende a moradora. Assim, ela começou a buscar doações pelo bairro de tintas, material de papelaria e livros.
As colaborações vieram e continuam vindo de várias pessoas tanto de Perus quanto de outras regiões. O projetista de móveis e designer gráfico Danilo Martins Bernardes, 41, mora no Jardim Adelfiore, é um dos colaboradores do projeto e não conhecia Índia.
Ele ajuda com projetos gráficos e materiais para as atividades. “Fiquei sabendo o que tinha ocorrido aqui, com a enchente, e vi pelas redes sociais no que ela estava transformando o local. Então entrei em contato para oferecer minha ajuda”.
CULTURA
Para Índia, um dos objetivos era ampliar o acesso à cultura e lazer para as crianças e adolescentes que vivem no entorno do córrego. Como boa parte dos bairros das periferias de São Paulo, Perus conta com poucos espaços públicos de cultura (cerca de 1 para cada 100 mil habitantes, segundo a Rede Nossa São Paulo). No Butantã, são 53 para cada 100 mil.
No caso de quem vive perto do córrego, os locais mais próximos para lazer para crianças são a Praça do Samba, que fica a 1,5 km de distância, e o Parque Municipal Anhanguera, a 2,5 km.
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Além de incentivar a leitura, há brincadeiras e atividades recreativas como “dança, música, desenho livre, pintura em desenho expresso, colagem e dobradura”. Índia afirma que houve aproximação das crianças da região que antes não brincavam juntas.
“Eles estão interagindo mais com os amigos da vila”, diz a auxiliar de acabamento gráfico Andreia Santana, 47, mãe de Giovana, 11, e de Vinicius, 10.
“As enchentes podem levar tudo, mas não podem levar de nós o espírito de solidariedade” – frase de autor desconhecido está inscrita nas paredes do projeto
O espaço é mobilizado de sexta a domingo, das 10h às 17h. Quase 40 crianças, com idades entre 2 e 15 anos, passam pela iniciativa. Os mais novinhos, ficam acompanhados pelos responsáveis. Os outros são “entregues” aos cuidados de Índia e seus ajudantes: em geral familiares, amigos e moradores que têm abraçado o projeto.
“A quantidade de lixo que era despejada no córrego diminuiu de modo significativo”, comenta a doméstica Joyse Lopes de Oliveira, 23, que leva o filho Arthur, 4, para brincar no espaço.
A questão de preservar o local e de como o descarte irregular de lixo pode contribuir com enchentes tem sido passado às crianças, como relata Luiz Felipe, 11, um dos garotos que brincam no espaço.
“Para quem ainda não sabe, a gente vai explicando que não pode jogar lixo no rio. A gente também não, porque se fizer isso, sabe que vai todo mundo sofrer de novo. Então evitamos isso”, diz.
“Antes da enchente eu até brincava aqui, mas não conhecia quase nenhuma dessas crianças. Para mim, passavam do meu lado e não eram ninguém. Hoje em dia já conheço, converso, brinco e faço de tudo”, completa.
Vitória, 15, diz que a ideia da Índia de apagar as marcas da destruição, sem esquecer a história por trás desse espaço, está dando certo. “Aqui é um lugar onde aconteceu um acidente e nós estamos aqui para relembrar tudo”, diz a garota. “Não podemos mais jogar lixo para entupir os rios e correr o risco de [enchente] novamente”.
Jornalista, fotojornalista e apresentadora de podcast. Atuou em comunicação corporativa. Já participou de diferentes projetos como repórter, fotógrafa, verificadora de notícias falsas e enganosas. Foi uma das apresentadoras do ‘Em Quarentena” e da série sobre mobilidade nas periferias. Ama ouvir histórias, dançar, karaokê e poledance. Correspondente de Perus desde 2018.
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