Por: Lucas Veloso
Notícia
Publicado em 21.12.2018 | 15:15 | Alterado em 16.08.2021 | 21:09
“Meu corpo está lá fora no chão perfurado com todos os buracos do mundo. Infelizmente não deu para trazer o pão. Essa nossa cor preta provoca os 50 tons de bege fortemente armados com seus dentes de sabre afiados, prontos para atacar. Mãe, prepare o velório como pode”.
Magro, com fala pausada, o cabelo cortado nas laterais com cachos na parte de cima. O nome dele é Jhonny Salaberg, 23, dramaturgo de “Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã”.
Salaberg vem da periferia, em Guaianases, zona leste de São Paulo, onde morou em várias casas alugadas com a família. Há três anos em Santo André, na Grande São Paulo, para conseguir estudar na Escola Livre de Teatro.
Foi ali que nasceu a peça sobre a história de um número que apareceu no Atlas da Violência de 2015: a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.
A obra conta a história de um menino nascido e criado em Guaianases, que vai à padaria a pedido da mãe, e leva um “enquadro” de um policial. Depois disso, a narrativa mostra uma corrida pela sobrevivência. O personagem passa por países da América Latina e da África, onde vive experiências que mostram como o racismo age em outros cantos do mundo.
“Primeiro, isso era um exercício primeiramente de três páginas, com começo, meio e fim. No decorrer do curso, pude voltar a ele para desenvolver mais a narrativa”, relembra. “E o processo foi se construindo muito organicamente, tanto que muita gente falou que escrevi bem rápido”, completa Jhonny.
Na correria, o menino é atingido por 111 tiros vindos de um policial. O número de balas faz referência a dois crimes: a Chacina de Costa Barros, no Rio de Janeiro, onde cinco jovens foram assassinados por policiais militares no bairro, quando voltavam para casa de carro. E 111 foi a quantidade de mortos no massacre do Carandiru em 1992.
O texto, narrado em primeira pessoa, também foi inspirado na infância do dramaturgo, que viu amigos morrerem de forma corriqueira. Sobre enquadros, lembra que não sofreu tantos quanto o irmão. Para ele, o fato de ser um jovem gay o livraram das abordagens policiais.
Enquanto escrevia o roteiro, uma das preocupações era tratar de temas ‘pesados’, como racismo, de forma mais leve. Ele diz acreditar que assim o diálogo se torna possível com quem ainda não compreende a questão. “Precisava de uma maneira para chegar no outro”, diz.
A resposta veio do conceito de leveza proposto pelo italiano Ítalo Calvino, um dos mais importantes escritores do século 20, que foi estudado para o desenvolvimento da criação. “O objetivo final era que uma vírgula causasse mais dor que um soco”, parafraseou Salaberg.
“Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã” vem na força da metáfora, sim. O vento significa o policial, e o picumã é uma palavra indígena, que significa poeira ou foligem, mas no texto representa o menino”, define o dramaturgo.
Com a peça escrita, conseguiu incentivo público para produzir o espetáculo. A obra com os amigos Ailton Barros, Clayton Nascimento, sob a direção de Naruna Costa, ficou em cartaz entre junho e julho deste ano, na quarta mostra de dramaturgia do Centro Cultural de São Paulo.
Em dezembro, na escolha dos Melhores de 2018, a peça foi finalista nas categorias de Dramaturgia e Direção pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes). No início deste mês, os críticos divulgaram a lista e Naruna Costa levou o prêmio de melhor diretora do ano por causa do espetáculo.
Após as exibições, recebeu propostas para seguir em cartaz, mas por falta de dinheiro não conseguiu seguir com as apresentações. Hoje, busca apoio em editais e propostas para voltar com Buraquinhos.
A obra também deu a possibilidade de Jhonny fazer atividades na escola pública em que estudou. Na sala, fez rodas de conversas com os alunos e leu trechos do livro. Além de oficinas de escrita, os alunos fizeram a releitura do texto a partir de suas vivências.
“Eles contaram casos de preconceito com o cabelo e com a cor deles, da relação com a família, amigos. Acho que a troca foi bem importante. No fim, quando falava que estudei naquela mesma escola, eles ficavam desacreditados”, observa.
Como artista negro, Jhonny deseja que a história contada no livro não seja verdadeira daqui alguns anos. Apesar do cenário, que, segundo ele, não apresenta melhoras significativas à população negra.
Sobre as oportunidades, ele não enxerga pessoas da sua cor dentro da literatura e dramaturgia, mas faz uma promessa. “”Quero dizer que, se não abrirem as portas para a gente, iremos derrubar na porrada. Vai ser na bicuda, sem dó.”
O livro com a peça pode ser comprado online, no Facebook ou no site da editora Cobogó.
Lucas Veloso é correspondente de Guaianases
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