Por: Redação
Publicado em 21.11.2018 | 12:41 | Alterado em 22.11.2021 | 17:17
História do docente é contada pelo aluno Marcus Vinicius, do Grajaú, e é a primeira do projeto Acontece na Escola com estudantes do ensino médio
Tempo de leitura: 5 min(s)Marcos Vinicius
Colaborou Rômulo Cabrera
Elton Ferreira de Matos, o professor Elton, é um cara com uma memória invejável, além de um senso de direção fora do comum – apesar de cego. Diz ele que foram os anos de natação que o ajudaram nesse quesito. Confesso que tenho dúvidas.
Quando fui seu aluno, se eu passasse a aula em pé, ele sabia; se eu falasse demais, ele sabia – a ponto de me mandar algumas vezes para fora da sala. Não fosse absurdo, diria que o professor Elton tem superpoderes.
Não faz muito tempo que Elton se aposentou. Os cabelos ralos e brancos não deixam enganar: tem 59 anos, dos quais 32 deles dedicados à educação de inúmeros alunos. Foi meu professor de história em meu sétimo ano no Herbert Baldus, escola estadual que fica no Jardim São Bernardo, no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo.
Ele mora com a esposa Adriana, 43, a quem chama de Dri, em um condomínio nos arredores de Santo Amaro, na zona sul – na rua Capitanias Hereditárias, vale destacar. Não fosse coincidência, diria que foi uma escolha proposital devido à sua formação em história.
Fomos recebidos com pedaços de bolo e copos cheios de café. Elton falava sobre as 39 tomadas espalhadas pelos cômodos daquele apartamento e, vale dizer, apontava cada uma delas com precisão.
Apesar de anos sem nos vermos, e de agora estarmos numa situação completamente diferente, em que a figura de professor dá lugar ao de ser humano, é curioso que eu ainda me sinta tímido perto dele. Vai ver, a imagem de mestre é eterna – e o respeito também.
“Pode começar, Marcos”, falou Elton. Eu gelei. Olhava do Rômulo para o Elton, do Elton para o Rômulo e o máximo que consegui dizer aquele momento foi um extenso “ééé…”.
A ORIGEM DOS ‘SUPERPODERES’
Elton nasceu no município de Senhor do Bonfim (BA), mas veio para São Paulo com a família ainda muito pivete, com um ano de idade. Passou toda a infância no Jardim Alfredo, próximo à Represa Guarapiranga, também na zona sul.
Ele nem sempre foi cego. A vida mudou a partir dos sete anos quando, em decorrência de um tumor que se formara próximo ao nervo óptico, perdeu gradativamente a visão dos dois olhos. Apesar de novo, Elton tinha consciência da gravidade da situação.
“Quando estava internado, eu fingia que estava dormindo, mas escutava as conversas dos médicos com os meus pais. Falavam sobre a cirurgia e que talvez eu não sobrevivesse. Eu sabia de tudo isso, mas não podia falar para ninguém. Eu chorava, chorava muito, porque eu sentia que poderia não sobreviver.”
Quisera que Elton sobrevivesse à cirurgia que lhe retirou um abscesso de 150 gramas da cabeça. Devido a isso, hoje o professor aposentado pôde contar essa e outras histórias.
Perguntamos qual a última imagem que ele se lembra. Qual nossa surpresa quando nos disse que é a Represa de Guarapiranga.
“A represa era limpa e azulzinha. Me lembro dos veleiros, o vento soprando, era a coisa mais linda. Me lembro de olhar para água e ter a sensação de que ela se juntava com o céu. Era uma visão maravilhosa. Graças a Deus eu ainda pude enxergar isso.”
Elton estudou todo o fundamental no Instituto de Cegos Padre Chico, no Ipiranga, onde aprendeu braile, orientação e mobilidade, atividades básicas, e como arrumar a cama. Também praticou natação e futebol.
PROFESSOR, BOLEIRO E MASSAGISTA
De lá pra cá, Elton concluiu o curso de pedagogia, com pós-graduação em Orientação Educacional e Especialização em Deficiência Visual. É bacharel em história e geografia, além de contar com passagens por inúmeras escolas no município de São Paulo.
No currículo, coleciona palestras e consultorias. Já colaborou com o doutorado de uma professora na USP, na área de mapas para deficientes visuais. Pelo que contou, a maquete que criaram foi reconhecida pelos pares, o que lhe rendeu consultorias profissionais em outros países.
Em outra oportunidade, Elton foi técnico de futebol, convidado por alunos à contragosto da diretora da escola Adrião Bernardes, na Ilha do Bororé, também bairro do Grajaú. Ela sugeriu que o professor não seria capaz de treiná-los corretamente e prejudicá-los em competições.
O professor, como bom boleiro que é, dominou a briga no peito, treinou os alunos e venceu todas as partidas. A única exigência era de que não fossem violentos e “jogar só na bola”. “Eu provei que era capaz de treinar aquelas crianças”, disse.
Mas de fato, o que mais nos chamou a atenção, foi quando Elton nos disse que também é formado em “massagem”. Quando perguntado o porquê, disse-nos que à época do curso, achava que, para além da docência, precisava de algo mais. “Se não desse certo [como professor], eu me arriscava como massagista”, revelou.
A fim de provar suas habilidades, tomou a mão de Rômulo e a massageou entre o polegar e indicador. “Tá vendo, você tá tenso”, comentou. Não duvido nem um pouco, afinal, meu mentor estava no segundo copo de café – o meu copo por sinal.
“O deficiente tem o tato mais apurado. Quando toco em alguém, sei aonde os nódulos estão. Nós vamos direto no nervo, certinho”, explicou.
APOSENTADORIA
Às vezes me pego imaginando o que se passa na cabeça desses grandes empresários quando topam com franquiadas na rua. Deve ser um barato encontrar o trampo, ou o resultado dele, em lugares aleatórios, assim, do nada. E talvez seja assim que Elton se sinta quando encontra os ex-alunos – alguns que hoje são professores, tipo meu mano Lucas Leal, que se formou em história uns anos atrás e hoje é professor eventual lá no Herbert Baldus.
Agora aposentado, Elton planeja viajar pelo Brasil com a esposa, a fim de descansar o corpo e a mente. Contou-nos do desejo em escrever um livro “que ajude as pessoas, que fortaleça as pessoas”.
É provável que seja a última vez que o veja – ou talvez não, quem sabe? Fato é que ao fim da conversa, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido. Mais que isso: com um sentimento de viver essa louca vida, cada vez mais.
Quando perguntei se ele havia realizado o sonho dele, Elton foi categórico. “Sim”. E completou: “Acho que consegui passar para os meus alunos a humildade. Ninguém precisa pisar ou humilhar o outro, porque todos somos iguais.”
Marcos Vinicius é estudante do 2ª série do ensino médio na escola estadual Herbert Baldus
Rômulo Cabrera é correspondente de Suzano
Essa reportagem foi produzida por um participante do programa de bolsa de jornalismo Acontece na Escola da Agência Mural, no qual estudantes do ensino médio de escolas públicas da região metropolitana de São Paulo produzem conteúdo jornalístico sobre temas do cotidiano escolar. A iniciativa integra o projeto Mural nas Escolas.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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