Por: Isabela Alves | Jessica Bernardo
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 14.03.2023 | 20:32 | Alterado em 15.03.2023| 14:28
Com casas compradas há mais de 30 anos, moradores do Grajaú vivem a expectativa de finalmente ter uma casa regularizada. Mas, enquanto a promessa não se cumpre, famílias vivem o medo permanente de terem a casa desapropriada ou a posse dos imóveis questionadas
Tempo de leitura: 6 min(s)No Cantinho do Céu, bairro do Grajaú, distrito localizado no extremo sul da cidade de São Paulo, a maioria das casas vêm de um tempo em que a formalidade ainda era informal. Moradores dali compraram os imóveis com o contrato de compra e venda e boa parte não possui escritura.
Estima-se que a região possua cerca de 10 mil famílias que não têm a posse confirmada pela prefeitura e nem recebem o IPTU (Imposto da Propriedade Territorial Urbana). O tributo ainda é um assunto nebuloso para muitos moradores que não têm ideia de como regularizar as propriedades. A Prefeitura de São Paulo selou as casas para que o IPTU seja regularizado até 2025.
“É preciso regularizar, porque uma moradia que vale R$ 200 mil não tem garantia se não existe o IPTU. A documentação de posse da casa valoriza o imóvel e pode ser deixada para os filhos no futuro”, afirma Floripes Andrade Fernandes, 69.
A aposentada é líder comunitária da região há mais de três décadas e fundou a Associação Comunitária Cantinho do Céu, com o objetivo de trazer melhorias para a região. Em 1986, ela também comprou um terreno por 150 mil cruzados.
A Agência Mural ouviu famílias que buscam essa regularização há décadas e querem garantir um pequeno legado para as próximas gerações. Ao mesmo tempo, vivem com o receio de que aquilo que adquiriram no passado possa ser questionado no futuro, por falta de um papel: o IPTU.
O Cantinho do Céu nasceu após uma ocupação no início da década de 1990.Com a atuação de Floripes e de outros moradores, chegaram avanços como o acesso ao saneamento básico, asfalto nas ruas, a construção do CEU (Centro de Educação Unificada) Navegantes, inaugurado em 2003, e da UBS (Unidade Básica de Saúde) Cantinho do Céu, aberta em 2016.
Teve início também um Programa de Urbanização de Favelas, promovido pela Secretaria Municipal de Habitação. Agora, com a regulamentação obrigatória do IPTU, há outro grande desafio à frente para dar segurança a quem vive por ali.
Isinildo dos Reis Oliveira, 60, é pedreiro e mora na região desde 1992. Ele, que antigamente trabalhava como entregador de material de construção, foi um dos responsáveis pela construção do prédio da associação.
“Antes aqui era tudo barro. Para pegar uma perua, a gente usava uma sacola nos pés. Hoje em dia melhorou muito. Então seria muito bom que a gente tivesse o documento”
Isinildo Oliveira, morador da região desde 1992
Ele morava com os dois irmãos, Ismael e Neide, na beira da represa Billings, de onde foram retirados pela Prefeitura por se tratar de APA (Área de Proteção Ambiental). Apesar de não morarem mais em área de risco, continuam sem a documentação da nova casa. “A gente só tem o recibo do dinheiro que transferimos para o antigo dono.”
Pela falta de informação, a regulamentação do IPTU também traz desconfiança. Moradora do bairro há 26 anos, a dona de casa Francisca do Carmo, 65, diz que tem medo de ir à Prefeitura e perder a moradia, já que não sabe quem é o verdadeiro dono da propriedade. Ela argumenta ainda que deveriam fazer reformas nas ruas.
“Se for pra legalizar a moradia de todo mundo, que arrumem também as calçadas. Aqui não tem espaço nem para a passagem dos ônibus escolares”
Francisca do Carmo, 65
Para a aposentada Maria do Rosário Costa, 60, as famílias de baixa renda deveriam ser isentas do pagamento, pois por conta da crise econômica dos últimos anos, elas não teriam recursos para bancar mais uma dívida.
“Tenho hérnia de disco, não consigo trabalhar e só vivo com R$ 500 do Bolsa Família [programa que mudou de nome para Auxílio Brasil] que uso para criar minhas duas netas. Dependendo do preço e se a gente puder pagar, vai ser uma boa. Queremos viver em paz”, desabafa.
O IPTU é cobrado de acordo com a metragem do lote ou a edificação da casa. Em entrevista à Agência Mural, a secretária executiva da Secretaria Municipal de Habitação, Elizabeth França, apontou que o bairro do Cantinho do Céu ainda está terminando as seis fases de obras de reurbanização. Quando concluídas, será feita a regularização fundiária.
Por conta do tempo em que os moradores locais vivem na região, não será cobrado o valor do IPTU. “A regularização envolve atualizar o cadastro das famílias no cartório e outros processos burocráticos”, diz.
A dificuldade dos registros ocorre porque muitas áreas das periferias de São Paulo são locais onde antigamente eram as zonas rurais. Com isso, muitos lotes individuais não contam no cadastro da Prefeitura.
Segundo a liderança Floripes, as casas do bairro serão avaliadas por meio da edificação, por conta dos chamados “puxadinhos”, ou seja, construções que foram anexadas à casa principal.
Aqueles que vivem nas áreas de risco ao redor da Represa Billings nos bairros Gaivotas, Parque do Lago Azul, Prainha e Monte Verde, serão removidos do local. Há a promessa da Prefeitura de pagar o auxílio aluguel para essas famílias.
Parte da pressa para realizar a regularização do Cantinho do Céu vem da construção do novo Parque Linear, projeto de reurbanização que já está com 85% das obras concluídas. “O bairro vai ficar importante para receber turistas. Também se comenta de fazer um transporte hidroviário que vai trazer as pessoas de barco até aqui”, afirma a líder comunitária.
A expectativa desses avanços é deixar para trás dificuldades que se mantiveram por décadas.
Na década de 1970, houve um processo de precarização do trabalho em paralelo ao crescimento intenso da urbanização. Foi aí que explodiu o crescimento dos loteamentos irregulares nas favelas.
Débora Ungaretti, pesquisadora do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade), aponta que a situação de vulnerabilidade que encontram essas famílias não é um caso isolado no país.
“O processo da urbanização no Brasil apresentou desde o seu início a expulsão e exclusão de determinados grupos sociais, sobretudo os mais pobres e a população negra”
Débora Ungaretti, pesquisadora
A situação voltou a se agravar nos últimos anos, em meio à pandemia de Covid-19. “A gente está vivendo um processo de aumento do preço dos aluguéis e as famílias não estavam conseguindo pagar os valores desde 2019”, ressalta.
O aumento no custo de moradia levou ao aumento nos despejos e, em consequência disso, no surgimento de novas ocupações na cidade, no número de pessoas em situação de rua e em conflitos fundiários.
Entre 2019 e 2022, a capital paulista ganhou 6 mil domicílios em favelas, segundo o sistema de monitoramento da prefeitura, sendo que 5.100 dessas residências foram construídas apenas entre 2021 e 2022.
Esperança de servir para garantir a regularização e a valorização das casas construídas no Grajaú, o IPTU é um é um imposto que é transformado em investimento para a própria infraestrutura da cidade.
“Ele é considerado um imposto impopular, porque é direto. Quando a gente vai à feira ou ao bar tomar uma cerveja, a gente não sabe o quanto daquele produto é imposto. No caso do IPTU, você tem o boleto com o valor”, afirma Tomás Wissenbach, especialista em IPTU e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Os impostos arrecadados pela prefeitura, dentre eles o IPTU, tem o valor destinado para áreas específicas. Ao menos 25% devem ser destinados para a educação e 15% para saúde. Com isso, os valores desse tributo deveriam ajudar a melhorar os serviços da cidade.
“É um instrumento importante para você produzir uma cidade mais justa. Por outro lado, se você calcula um valor maior do que o de mercado, isso interfere na capacidade dessas famílias eventualmente mais pobres de acumular bens-materiais”
Tomás Wissenbach, especialista em IPTU
Segundo Pedro Humberto Bruno de Carvalho Junior, pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), as prefeituras cobram um valor muito alto pelos terrenos vazios justamente para estimular a construção e inibir a especulação imobiliária, que ocorre quando se compra um terreno ou imóvel e não se faz nenhum uso dele, apenas para aguardar a valorização.
No entanto, muitas vezes esses terrenos são ocupados ou loteados irregularmente.
Pensando na situação de São Paulo, é comum encontrar famílias que constroem mais de uma casa no mesmo terreno.“A prefeitura coloca um drone para mapear as propriedades. Os aparelhos tiram a foto, vêm as medidas e registram as novas construções como imóvel novo, por isso acaba sendo supervalorizado”, explica Pedro.
O especialista aponta que, nestes casos, é necessário que o contribuinte vá até a Prefeitura para tentar provar que o preço do IPTU não condiz com a realidade e que o imóvel é antigo.
Para isso é possível utilizar uma conta antiga e fotos.Também é válido mostrar valores de mercado, ou seja, o quanto aquele terreno vale em comparação a outras construções. Para obter mais informações sobre os critérios de isenções dos imóveis em São Paulo, acesse o site da Prefeitura aqui.
O IPTU é o Imposto da Propriedade Territorial Urbana. Este tributo, instituído pelo Código Tributário Nacional e pela Constituição Federal, é cobrado pelas Prefeituras. O imposto incide sobre os imóveis situados em regiões urbanas do Brasil, sejam elas casa residencial, predial, apartamento, terreno ou um estabelecimento comercial.
A responsabilidade do pagamento do tributo é do proprietário do imóvel. No caso em que o imóvel é alugado para outra pessoa, é necessário fazer uma negociação entre as partes.
Para ter o terreno regularizado, o morador precisa fazer o cadastro do imóvel na Prefeitura e o órgão realiza uma avaliação para saber o valor de cada imóvel.
De acordo com dados do último estudo produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), lançado em abril de 2021, a arrecadação desse tributo aumentou de 33% em 2008-2009 para 41% em 2017-2018 no país.
No Brasil, a cobrança do valor é feita por meio da PGV (Planta Genérica de Valores), que leva em conta a localização do imóvel, o preço do terreno e o preço para o metro quadrado de área construída.
No valor venal são consideradas apenas as características do imóvel. Quando o imóvel é avaliado a partir do valor de mercado, também é levado em conta outros quesitos como localização, garagem, acessibilidade da região, investimentos públicos, entre outros.
Isenção: Estão isentos do IPTU em São Paulo os imóveis construídos como residência, de tipo horizontal ou vertical e de padrões baixo a médio, cujo valor venal em 2022 seja superior a R$ 120 mil ou igual e inferior a R$ 230 mil.
Há ainda outros critérios para a isenção do imóvel:
*Esta reportagem foi produzida com apoio do ICFJ (International Center for Journalists)
Graduada em jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e pós graduanda em Mídia, Informação e Cultura pelo Celacc/USP. Homenageada no 1° Prêmio Neusa Maria de Jornalismo. Correspondente do Grajaú desde 2021.
Jornalista, cria de uma família de cearenses. Apaixonada por São Paulo, bolos e banhos de mar. Correspondente do Grajaú desde 2017.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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