Por: Matheus Oliveira
Reportagem: Matheus Oliveira
Edição: Laiza Lopes e Paulo Talarico
Publicado em 16.02.2023 | 10:54 | Alterado em 22.02.2023| 16:11
O samba atravessa gerações em São Mateus, na zona leste de São Paulo. Inspirados pelas rodas realizadas em outras regiões, o ritmo foi crescendo no bairro dentro dos quintais, venceu o preconceito e se tornou uma das referências da região
Tempo de leitura: 6 min(s)“Eu fui criado no berço do samba em São Mateus. Reduto abençoado por Deus. Terra igual essa não há”, canta Beth Carvalho no disco ‘Berço do samba de São Mateus’, de 2007. Abençoado pela madrinha do samba, São Mateus reúne há anos sambistas de várias gerações na zona leste da capital.
Mas nem sempre foi assim. “Aqui não tinha roda de samba não. Eu chorava aqui dentro de casa por saudades do samba”, relembra o compositor de sambas enredo e metalúrgico aposentado, Rubão das Mulheres, 82.
“Eu tocava um pouco de cavaquinho e só eu tocava aqui nesse lugar, mas eram quatro notinhas e só. Rapaz, eu não tinha sossego. O pessoal vivia na minha porta”, relata Rubens.
Nascido na cidade de Cravinhos, no interior paulista, Rubens foi criado nos bairros do Tatuapé e da Vila Prudente, também na zona leste. Em 1984, o metalúrgico comprou um terreno no Parque Boa Esperança, no Iguatemi.
O músico já compôs sambas enredos para os blocos Cabeções da Vila Prudente e Príncipe Negro e as escolas Leandro Itaquera, Colorado do Brás e Mocidade Alegre. Foi na Mocidade que ganhou o apelido Rubão das Mulheres pelo samba enredo ‘Essas Maravilhosas Mulheres Ousadas’, de 1998.
Além disso, Rubão tem mais de 10 sambas enredo no bloco Amizade Zona Leste, que começou nos anos 1990 no bairro Parque Boa Esperança. O primeiro samba enredo do bloco é hoje o hino da escola.
Na mesma época em que Rubão chegava ao Iguatemi, a família de Naldo Candiá, 49, fazia samba no fundo de casa enquanto a avó abria o terreiro no candomblé no bairro do Jardim Vera Cruz, no São Rafael.
“Eu dava rolê com meu irmão pelas favelas de São Mateus, a gente passava nas ruas e via o pessoal ouvindo Moisés da Rocha, Partido em Cinco, Bezerra da Silva. Você ouvia o som da favela”, recorda.
São Mateus é composta por três distritos e cerca de 50 bairros. Nos anos de 1980 a ligação e comunicação entre esses bairros era difícil. Mesmo assim, era na beira dos campos de futebol, nos CDMs (Centros Desportivos Municipais), que os sambistas se reuniam.
A “batucada de beira de campo”, como nomeia Candiá, era feita a partir de instrumentos de escolas de samba, tocada em pé, e entoava sambas enredos antigos com o objetivo de inflamar os times e celebrar.
Naldo Candiá argumenta que o sucesso do grupo carioca Fundo de Quintal, nos anos de 1980, apresentou uma nova forma de tocar samba.
‘O Fundo de Quintal ensinou essa divisão para ninguém tocar alto o tempo todo. A beira de campo era explosiva, enquanto o samba tocado sentado tinha aquela delicadeza. Não era bater, era tocar’
Naldo Candiá, sambista de São Mateus
A mudança da batucada em pé para o samba sentado não agradou a todos, como indica Rubão das Mulheres. “O pessoal da velha guarda comentava que era samba de tchutchutchu”. “Tchutchutchu” pode ser traduzido hoje em dia como “algo Nutella”.
Seja em pé ou em beira de campo, os sambistas de São Mateus precisavam lidar com a violência do Estado. “A polícia vinha para querer tesourar. Teve um dia que os caras [do samba] se invocaram e foram pra cima. A 49ªDP [de São Mateus] era foco de muito sambista. Meu tio parou lá várias vezes”, relembra Candiá.
Para proteger os músicos da polícia, mulheres da região abriram os quintais para que tocassem.
“O samba de São Mateus nasce como proteção dessas tias preferindo que seus filhos ficassem dentro dos seus quintais, que eles não fossem mais um na lista do Dops [Departamento de Ordem Política e Social]”, argumenta a assistente social e mestranda em antropologia Fabiana Marques, 42.
Nascida no carnaval de 1980, Fabiana é do Jardim da Conquista, em São Mateus. No mestrado ‘Ofó de Exu nos caminhos de Ogum – o samba que vem lá de São Mateus pede passagem’, a assistente social fala sobre a importância das mulheres para o samba da região.
Entre Tia Filó, Dona Severina, Dona Carmem, Dona Hercília, a mais famosa é Tia Cida dos Terreiros, a matriarca do samba de São Mateus.
Contudo, a proteção das tias não alcançava as ruas. Certa vez, um policial rasgou o couro do pandeiro de Naldo Candiá. “A felicidade era um elemento proibido, que não podia ser demonstrado. Nessa rua a gente estava tocando e a polícia vinha dar lição de moral”, conta o músico.
Naldo fez parte do grupo Apoteose do Samba, e os músicos Gerson da Banda e Tocão, também de São Mateus, tocavam na noite paulistana. Eles percorriam redutos do samba no começo dos anos de 1990, onde tinham contato com outros grupos, e compartilhavam com o bairro as tendências do gênero musical.
Um dos músicos influenciados por essa circulação do samba foi Yvison Pessoa, 45. Nascido na cidade de Tabira, em Pernambuco, Yvison chegou no Jardim da Conquista, em São Mateus, em 1990. Quando jovem frequentava a casa de Tia Cida dos Terreiros e conheceu Tocão, filho de Tia Cida. Na época, Tocão se apresentava com o sambista Almir Guineto.
Por tanto frequentar a casa da Tia Cida, Yvison adquiriu mais gosto pelo samba e também começou a tocar na noite. Fez parte dos grupos Ciranda do Povo e Quinteto em Branco e Preto. Foi no Quinteto que o músico conheceu Beth Carvalho, e chegou a se apresentar como banda de apoio da madrinha em shows internacionais.
“O samba de São Mateus se dá pelas pessoas que vieram para cá e a presença da comunidade negra no bairro.Tia Filó, Dona Hercília, Gerson da Banda, era um reduto da comunidade negra”, destaca Yvison.
Fabiana Marques acrescenta que o samba de São Mateus é diferente porque “bebe de várias fontes”.
‘Ele nasce na cidade de Pirapora do Bom Jesus, Tietê, Campinas, no interior de São Paulo. Onde teve a agricultura cafeeira com mão de obra escravizada veio para São Mateus’
Fabiana Marques, mestranda em antropologia
“Os meninos aprenderam lá fora, trouxeram pra cá – principalmente o Gerson e o Toco – e começaram a passar para os meninos as novas batidas, porque até então era só a batucada de campo.”
A influência das migrações nordestinas para o bairro também está presente na composição da música. “Eu e minha família somos nordestinos e a gente consegue fazer um sambas meio puxado um pouco para o Nordeste”, conta Yvison.
Para reunir os diversos sambistas da região, Yvison organizou o Berço do Samba de São Mateus. O conjunto estreou em 2007 com o CD gravado pelo Sesc que conta com a participação de Beth Carvalho e Almir Guineto.
Já nos anos de 2010, Yvison, junto com músicos da região, formaram o Instituto de Preservação e Memória do Berço de São Mateus.
“O Instituto é para guardar essa memória local, um espaço para fomentar o samba. Queríamos que fosse um centro de referência para os músicos e para a molecada”, explica Yvison.
Em 2022, Yvison lançou o Selo São Mateus com a função de produzir músicas e clipes de artistas locais. “Como temos uma cena bacana de samba, tentamos produzir. As minhas coisas mesmo eu tô lançando tudo por lá”.
Para Rubão, que também é embaixador do Samba de São Paulo, o ritmo do bairro transcende a região. “O samba de São Mateus é falado em tudo quanto é lugar”. Candiá aponta que isso não é por acaso. “É por São Mateus ter essa preocupação de manter a qualidade do samba”.
Jornalista, educomunicador e correspondente de São Mateus desde 2017. Amante de histórias e de gente. Olhar sempre voltado para o horizonte, afinal, o sol nasce à leste.
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