Educador, ativista cultural e figura importante da zona noroeste de São Paulo, Soró morreu nesta quarta-feira (30), quando organizava atividades coletivas
Léu Britto
Por: Jéssica Moreira | Lucas Veloso
Notícia
Publicado em 31.10.2019 | 13:54 | Alterado em 12.03.2022 | 11:57
Educador, ativista cultural e figura importante da zona noroeste de São Paulo, Soró faleceu nesta quarta-feira (30), quando organizava atividades coletivas
Tempo de leitura: 6 min(s)“Quando alguém vai deste mundo a gente chora, chora, chora, chora. Quando alguém vem pra esse mundo a gente canta eu vou cantar eu vou, ooooooo irê irê irê, ooooooo irê irê irê…”.
O ponto de jongo, sempre entoado no quintal da Comunidade Cultural Quilombaque, hoje é cantado a tons tristes, abraçando as saudades daqueles que ficam, diante da partida de José Soró, 55, um dos pilares da organização, que morreu na tarde desta quarta-feira (30), após uma parada cardíaca.
“É com muita dor que nós informamos aos amigos e parceiros que nosso mestre José Soró fez sua passagem”, disse a Quilombaque em texto divulgado pelas redes sociais. O ativista cultural morreu ali mesmo, em seu terreiro, quando o grupo se preparava para ir a um sarau sobre saúde da população negra.
“O mais sábio de todos. O que sabia nos dizer aquilo que precisávamos ouvir. Que nos ensinou a lutar pelos nossos sonhos e ideais”, fala ainda a nota de pesar.
Casado com Valéria Pássaro, pai de Ana, Matheus e Pedro, Soró foi vítima de uma parada cardíaca aos 55 anos. Para além da família, Soró deixa uma legião de jovens e adultos órfãos de seus ensinamentos pelos territórios periféricos, principalmente na região noroeste, onde o educador paulo-freireano sempre enxergou as pessoas além e sonhou “que um novo mundo era possível” e as periferias o estavam construindo.
O velório será às 21h desta quinta (31)e o sepultamento às 9h da sexta (1º/11), no Cemitério Dom Bosco, na Estrada do Pinheirinho, em Perus.
Soró foi um dos principais sujeitos na construção de um território de cultura na região noroeste. Sempre mirando o futuro e autosustentabilidade do povo pobre e negro, ele realizava cursos voltados aos Direitos Humanos. A atividade inspirou o nascimento de muitos coletivos e organizações em Perus.
Além da Comunidade Cultural Quilombaque, onde atuava de forma mais constante, o articulador foi um dos idealizadores da Ocupação Artística Canhoba e da Ocupação Casa Hip Hop Perus, pois dizia que cada canto do bairro peruense deveria estar banhado de arte e cultura à população.
Era, ao lado de Valéria Pássaro, gestor e presidente das Casas Taiguara, um centro de acolhimento na zona norte de São Paulo, por onde passaram diversos meninos e meninas, que puderam encontrar caminhos de inserção na sociedade. O espaço oferecia assistência social e capacitação profissional.
Desde os anos 1990, ao lado de outros companheiros e lideranças da região, cobrava a reapropriação do prédio da abandonada companhia de cimento do bairro, para transformá-la em um centro de cultura e memória do trabalhador. Também queria que o espaço se tornasse uma universidade livre e colaborativa.
Embora o sonho de ocupar a fábrica estivesse distante, Soró entendia que contar a história e fazer “ferver o território” era um modo de manter a luta dos sindicalistas Queixadas viva, tornando Perus um grande museu a céu aberto. Soró dizia acreditar no ser humano, na potência que cada um trazia consigo, independente da linguagem ou contexto de vida.
Em 2013, foi um dos cofundadores do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus, onde ajudou a mobilizar diversos eventos em prol da memória de luta da memória e desapropriação do prédio.
Comunicador popular desde os anos 1980, Soró sempre estava com uma câmera ou celular em mãos, registrando os eventos, as danças, as músicas e poesia. Ele via na comunicação um jeito de construir novos imaginários e, por diversas vezes, foi fonte de matérias publicadas pela Agência Mural.
Desde 2014, é um dos principais expoentes a colocar em prática a tecnologia social do Território da Cultura e da Paisagem, contida no Plano Diretor da cidade paulistana. Idealizou junto à Quilombaque, as trilhas da memória, um projeto de ecoturismo social com os principais pontos de resistência e luta da região.
Ele juntava os bairros, colocava as aldeias indígenas do Jaraguá para conversar com o terreiro da Quilombaque, e fazia os movimentos conhecerem a luta pela terra do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no acampamento Irmã Alberta.
Soró também levava os ensinamentos da região para outros cantos da cidade. De norte a sul da capital, dizia como os peruenses estavam fazendo o bairro se movimentar e gerar renda internamente. A “sevirologia”, que é a arte de se virar, estava sempre presente nas falas de José, inclusive horas antes de sua morte. “Ele chegou dizendo: hoje a gente vai fazer a sevirologia na prática”, contam os integrantes da Quilombaque.
Soró chegou em São Paulo, como migrante, vindo do Mato Grosso do Sul, Centro-Oeste, na década de 1970, com mais cinco irmãos menores e a mãe, após a morte do pai. Na capital, foram ajudados por um tio, chamado Gervázio.
Além da ajuda do tio, Soró contou com o auxílio de uma família na região e de seu Joaquim, um pai de santo de um terreiro de umbanda. Mesmo pequeno, o menino percebeu que havia uma solidariedade de conterrâneos, e de modo geral dos migrantes, que eram absoluta maioria em Perus e em toda a periferia da cidade.
Atualmente, trabalhava como educador, consultor em desenvolvimento humano e mediador de conflitos relacionais.
Soró passou muitas dificuldades financeiras com a família, quando chegou em São Paulo. As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), as pastorais da Igreja Católica, além de movimentos culturais e militância partidária foram alguns dos caminhos adotados para buscar uma vida melhor para si e à comunidade.
“Eu vejo que por mais que erros tenham sido cometidos por essa geração, que as mudanças e os avanços não tenham sido suficientes, estes golpes que atualmente sofremos é uma reação da elite colonialista às conquistas e avanços que fizemos. E é de extrema importância considerarmos isso para não sucumbirmos ao desespero”, avaliou Soró, em entrevista concedida ao portal Alma Preta, em outubro deste ano.
Durante a trajetória profissional, desistiu de empregos, pois buscava aliar o trabalho em atividades que acreditava. Teve diversas experiências, sendo a defesa e a garantia dos direitos de crianças e adolescentes a mais relevante para ele. Por alguns anos foi Conselheiro Tutelar, trabalhou com população nas ruas.
Entre os membros do movimento social e cultural das quebradas, a notícia chegou com tristeza, traduzidas nas palavras escritas pelos amigos.
O educador Sócrates Magno afirmou que acordou com a notícia de que ‘um grande amigo, educador, defensor incondicional dos direitos humanos, deixou esse plano’. “Muita gente se afetou com seus aprendizados sempre carregados de muita humildade, mas cheios de fundamentação e ‘firmeza permanente’”, relembra.
“Soró era um ajuntador de pessoas, lutava por causa (im) possíveis”, definiu Thalita Duarte, do Grupo Pandora. “Fará falta demais compadre. Grande parceiro na Ocupação Artística Canhoba. Sonhou junto com a gente cada pedacinho desse sonho”.
José Soró e seu legado
No seu terreiro
Marins Godoy
Partiu como guerreiro
Bengala na mão
Na cabeça chapéu de palha
Era assim que ia para a batalha
Partiu como um campeão
Foi assim em seu terreiro
Partiu como guerreiro
Vai-se o homem
Fica seu legado
Deixando esperança ao desesperado.
“Ele foi um homem incrível. Ele nos ajudou a entender o Brasil de um jeito especial”, disse nas redes sociais o professor húngaro Miklos Banhidi, que participou das trilhas da memória em 2018.
“Sua luta, sua prontidão e sua habilidade com as pessoas e com as palavras nos acompanharam em cada ação”, relembra Carla Borges, consultora e ativista de direitos humanos.
“De tanto poder contar, fiquei com a certeza de que ele sempre estaria lá, no lugar certo, na hora certa. Hoje vejo que sempre estará, nos legados que deixou para trás e um pouquinho em cada um de nós. Soró, presente!”, complementa a ativista, que atuou com Soró em atividades da Coordenação da Memória e Verdade da prefeitura de SP.
A professora Luciana André lembrou do respeito com que Soró tratava as crianças e o território, além do seu gosto por cachaça acompanhada de discussões. “Lembro do encorajamento pros sonhos que não morrem.Tristeza enorme”.
Foi com versos que o professor de inglês Marcos Nunes decidiu homenagear o amigo.
“Soró, seria luto um / Verbo ou substantivo? / Na boca desse mestre / qual se faria mais altivo? /Mestre das palavras / De fala mansa / Mas quando abre sua boca / O nosso coração alcança”.
“José Soró, que seu legado seja sempre preservado e ampliado pelas novas gerações. Que todos saibam quem foi esse homem (se é que era só um homem) é sua importância no território Perus. Te amamos”, emendou.
Soró nunca foi linear. Quem já o ouviu falando em mesas e rodas de conversa, sabe que não economiza no encontro de palavras e, por isso, nunca se deu muito com o tempo cronológico, contado, das normalidades.
E, por isso, sua memória e história ficam agora nas periferias de São Paulo, inspirando que é possível um novo mundo. “A única alternativa é se agrupar, criar mecanismos de sobrevivência e resistência, vivos, tanto quanto nosso ideário”, dizia.
Jornalista e escritora. Formada em Jornalismo pela FAPCOM. É cofundadora do Nós, mulheres da periferia e coautora do Blog Morte Sem Tabu (Folha.com). Escreve sobre diversos assuntos a partir das questões de raça, gênero e território. Correspondente de Perus desde 2010.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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