Como o livro de Itamar Vieira Junior me fez voltar à infância e refletir sobre ancestralidade
Magno Borges/Agência Mural
Por: Ana Beatriz Felicio
Crônica
Publicado em 29.03.2021 | 19:08 | Alterado em 22.11.2021 | 17:03
Quando eu era criança tinha medo de ir ao quintal de casa. Na minha cabeça, o quintal de meu avô, cheio de plantas que dava no portão da rua de terra onde a gente morava, era na verdade uma floresta.
Ficava amedrontada com as bruxas e o homem de chapéu branco que viviam entre as novas mudas e aquelas plantas grandes, que estavam ali bem antes de eu nascer, naquele pedaço de terra.
Era uma casa simples construída pelo meu avô na Vila Menck, em Carapicuíba, região oeste da Grande São Paulo. Todo mundo lá em casa dá risada disso até hoje, vê só: achar que quintal é floresta!
Bom, claramente eu ainda não tinha visto muitas florestas fora da televisão. Mas, além disso, sempre senti que havia algo de fato mágico nesse quintal do meu avô e talvez fosse esse contato dele com a terra e a quase devoção pelas plantas.
Além do quintal, que foi diminuindo de tamanho com os anos, seu Geraldo, como ele se chama, mantinha também uma pequena plantação, num terreno ainda não ocupado mas que já tinha dono. Era a “roça” dele.
Lembro da alegria quando meu avô voltava com o carrinho de mão com milho, cana ou mandioca, que a gente comia junto, eu, ele e minha avó, nos cafés da tarde da minha infância. A cana era minha favorita!
Outra recordação de infância que envolve seu Geraldo tem mulheres com bebês recém-nascidos doentes sofrendo de enfermidades que iam desde uma gripe até a temida “espinha virada”.
Essa galera procurava (e procura até hoje) meu avô no portão da casa para que ele os benzesse. Tinha época que parecia vir gente de Carapicuíba toda.
Ele sentava a pessoa em uma cadeira, pegava o crucifixo, algumas plantinhas, pedia para que as mãos do doente ficassem com as palmas voltadas para cima e no final receitava chá de ervas e outras receitas naturais. Muitos dos ingredientes eram colhidos do próprio “quintal-floresta”.
Meu avô, minha avó Mariaonilia e mais 12 filhos vieram do interior de Minas Gerais. Assim como várias outras netas de vó preta e pobre, eu não sei ao certo o quanto da minha recordação sobre a história da minha família é lenda inventada por mim a partir do que sobrou da lembrança oral e o quanto é verdade.
Mas naquelas tardes enquanto comíamos milho e mandioca, eles me contavam sobre um tempo que viviam em uma fazenda, num lugar esquecido, que eu não sei dizer o nome. Plantavam e colhiam aquilo que comiam, mas não havia salário. Não tinha médico e muito menos escolas para as crianças. Meus avós são analfabetos.
O pai do meu avô era o “ministro”, uma espécie de dono do centro espírita local. Aliás, foi onde meu avô aprendeu a benzer e fazer as receitas dos chás.
Minha avó, que depois que chegou em Carapicuíba se converteu em católica daquelas que não perde uma missa (e hoje não toca nem mais nesse assunto), também tinha seus dons espirituais e ajudava o povo todo da região.
Eu estou contando tudo isso porque enquanto lia o mais novo sucesso literário do momento, “Torto Arado” (Todavia), do Itamar Vieira Junior, pensei muito na minha família, sobretudo nos meus avôs e me emocionei várias vezes.
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O livro conta a história de duas irmãs e suas conexões com a terra. Se passa no sertão brasileiro e as acompanha desde crianças, quando passam por um acidente que resulta na perda da língua de uma das meninas, até a idade adulta.
Fiquei pensando quais eram as semelhanças entre Belonisia e Bibiana, lá no sertão da Bahia, e eu, uma jovem jornalista que mora na periferia da Grande São Paulo.
Sem voltar à minha infância, parece tudo muito distante, mas o retrospecto foi o que me ajudou a entender como Água Negra, a fazenda onde se passa a história, não está tão distante assim da Vila Menck.
O pai das protagonistas do livro, Zeca Chapéu Grande, era uma das figuras mais respeitadas na fazenda, mestre das brincadeiras de jarê (religião de matriz africana, um “candomblé de caboclo”). Ele provavelmente se daria bem com meu avô. Os dois contando histórias sobre as árvores, os bichos e os passarinhos.
Além disso, consigo ver a força de Bibiana, Belonisia e de todas as personagens de “Torno Arado” não só nas mulheres da minha família (de 10 tias e mais um monte de primas), mas em várias outras que conheci cobrindo e vivendo na periferia.
O jeito da Bibiana me lembra de minha mãe, por exemplo, a primeira da minha família a conseguir concluir uma faculdade.
Em um ano tão difícil, a literatura de Itamar me fez voltar ao passado. Não só ao meu, mas dos meus ancestrais, até daqueles que eu não conheci porque ninguém mais se lembra.
Assim como uma das irmãs de “Torto Arado” perde a língua, acredito que não lembrar da nossa história também é um tipo de mutilação a qual fomos submetidos e existem várias motivações para isso.
Acho que é muito difícil pensar em ancestralidade quando estamos condicionados a só olhar para frente, precisando sobreviver. Além disso, como a personagem Santa Rita Pescadeira (uma das narradoras do livro) nos conta no livro, o nosso passado pode ser doloroso demais.
Há histórias duras no passado do povo das periferias, histórias de silenciamento e dessas pequenas humilhações diárias, como o capataz da fazenda pegando sempre a maior parte da plantação.
Os tempos e os cenários mudam, mas a sensação de injustiça é a mesma na periferia e também no sertão. Há revolta e dor por todo lado. Mas também há esperança.
Ver “Torto Arado” na lista dos livros mais vendidos do Brasil me deixa feliz e inspirada.
Estamos aqui, estamos pensando e produzindo. Sabemos que apesar de tudo, contar nossas histórias importa muito. E parafraseando o autor, “o passado nunca nos abandona”.
Jornalista, curiosa, já foi apresentadora do Próxima Parada. Gosta de conhecer pessoas novas e descobrir o que as motiva a acordar todos os dias. Correspondente de Carapicuíba desde 2018.
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