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Agência de Jornalismo das periferias
Rolê

Os guardiões da cultura popular em São Paulo

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Por: Priscila Pacheco | Diego Brito

Notícia

Publicado em 27.08.2018 | 17:27 | Alterado em 18.05.2019 | 8:44

RESUMO

Moradores das periferias de São Paulo falam sobre as manifestações culturais e a importância de mantê-las vivas entre as novas gerações

Tempo de leitura: 5 min(s)

“Catirina estava grávida e ficou com desejo de comer língua de boi, mas justamente a do animal preferido do patrão. O marido, sem saber o que fazer, cortou a língua do animal, que morreu. Desesperado e com medo do fazendeiro, o homem pediu ajuda aos indígenas para fazer um ritual e ressuscitar o bicho. Assim, surge o Boi de Caboclinho”.

A história vinda de Limoeiro (PE) tem sido contada hoje por Caio César Mateus Ferreira, 23, no distrito Grajaú, zona sul de São Paulo, local onde vive há 16 anos.

O pernambucano é um dos migrantes que veio para a cidade paulistana e tenta manter viva a cultura popular. Morador do Jardim Gaivotas, bairro que faz parte do Grajaú, Ferreira chegou ao extremo sul com a mãe e as lembranças das festas do Boi de Caboclinho, também conhecido como Bumba Meu Boi ou Boi Bumbá.

O enredo sobre o animal faz parte do Folclore Brasileiro, que foi comemorado dia 22 agosto. Neste período, a Agência Mural foi entender como as narrativas estão sendo mantidas em algumas periferias da capital e da Grande São Paulo.

O TRABALHO DE CAIO

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Caio César gosta de pesquisar modas de viola (André Bueno/Divulgação)

Caio César Mateus Ferreira se denomina um contador de histórias e palhaço. Curte viola e cantoria – diz ser influência do pai, que ainda vive em Pernambuco.

O rapaz costuma falar sobre a tradição do boi para crianças e adolescentes e pensa que é um meio de a história não desaparecer nas grandes cidades. Os maiores são mais dispersos, mas o público infantil fica encantado.

“Às vezes só conhecem o nome: ‘Ah, esse que é o Bumba Meu Boi’, mas nunca ouviu a história. Às vezes viu, mas não sabe que tem variação de boi, como é a música”, explica.

Em 2017, ele passou um semestre trabalhando com grupos de pessoas de oito a 15 anos de idade no Grajaú. Conversaram sobre o conto, construíram fantasias, conheceram canções, montaram coreografias.

A atividade despertou até o interesse do pai de um dos meninos. “Ele tinha muitas lembranças dessa brincadeira do boi. Falava: ‘Via bastante isso aí lá no interior da Bahia. Meu pai gostava muito’. Até aprendeu a cantar as músicas com a gente”, relata.

Os festejos referentes ao Boi Bumbá são realizados principalmente no Nordeste e no Norte do Brasil, divididos em três partes: nascimento, morte e ressurreição do animal.

A FESTA DO BOI NO MORRO DO QUEROSENE

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A festa mostra a tradição do Maranhão (Fernando Solidade/Divulgação)

Em São Paulo, uma representação do Bumba Meu Boi é realizada no Morro do Querosene, no Butantã, zona oeste. A festa é organizada pelo Grupo Cupuaçu – Centro de Estudos de Danças Populares Brasileiras. Começou com pequenos desfiles pelo bairro, mas foi em 1990 ou 1991 que passou a ser realizada formalmente.

O Cupuaçu foi criado em 1986 por moradores que fizeram oficinas de danças maranhenses com Tião Carvalho, migrante do Maranhão e um dos principais fomentadores da cultura no local.

O percussionista e ritmista Antônio Carlos Lucato, que mora no Querosene desde o início da década de 1990, conta que a festa, dividida em três partes no decorrer do ano, recebe uma média de 5 mil participantes, mas poucos da vizinhança. “Hoje em dia a gente não divulga mais a festa porque vem muita gente. O pessoal da comunidade não participa muito”.

A versão apresentada no Morro do Querosene mostra o nascimento, que costuma ocorrer no fim da quaresma, o batizado em junho e a morte entre o final de setembro e o início de novembro. A divulgação das datas acontece principalmente pelo “boca a boca”, segundo Lucato.

A autônoma Lucilene Moreira, 53, que vive no Morro do Querosene há 27 anos, interpretou o primeiro vaqueiro da encenação na rua, foi uma das primeiras mulheres a tocar pandeirão e, atualmente, é o miolo, personagem que conduz o Boi.

Para ela, Tião é o grande precursor da festa.  “Foi com a vinda dele pra cá que outros maranhenses vieram, começaram a se aproximar”.

De acordo com Lucilene, uma manifestação do Boi na capital é uma maneira de se reconectar com a ancestralidade nordestina. Nascida em São Paulo, mas filha de uma alagoana e de um cearense, ela relata que o resto da população paulistana que vai à festa tem um olhar turístico. “Lá [no Maranhão] a relação é: nós somos e vivemos isso”.

FOLCLORE OU CULTURA POPULAR?

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Cortejo de Maracatu no Jardim Ruyce, em Diadema, Grande São Paulo (Divulgação)

Para o contador de histórias Caio César Mateus Ferreira, a palavra que é a junção de folk (povo) e lore (sabedoria) não cabe na atualidade. “A cultura popular está mais viva”.

Lucilene prefere “manifestação popular” por acreditar que algumas ações culturais são continuação da antiguidade e que sobrevivem à tecnologia. “Manifestação popular me soa uma coisa mais viva e pulsante, que está sempre acontecendo, do que folclore”.

Moradora de Diadema, na Grande São Paulo, a cantora e pesquisadora Ana Cacimba, 29, diz que quando falamos folclore as pessoas já relacionam a Saci, Cuca, e outras histórias que o povo conta, mas sem ter propriedade no assunto. “A cultura popular é algo ensinado pelos mestres, pessoas que às vezes não sabem ler, mas são muito boas naquilo que fazem. A palavra folclore diminui o trabalho delas”.

Ana é uma das criadoras da Companhia Arcos e Fitas, que atua com crianças por meio de jogos e música. Além de Cacuriá e Maracatu de Baque Virado, ambas danças do Maranhão e Pernambuco, respectivamente, chamadas de folclóricas.

“No Maracatu de Baque Virado, que vem das senzalas, a gente passa para a criança não só a forma de tocar, mas toda a carga que vem com o toque, a negritude, a história que está por trás”, diz a cantora.

De acordo com o antropólogo Gilmar Rocha, no artigo “Cultura popular: do folclore ao patrimônio”, nem toda cultura popular é folclórica.

A ORALIDADE

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Cena da peça de teatro “As histórias do Velho Batista” (Alessa Melo/Divulgação)

O ator e contador de histórias Paulo Henrique Sant’Anna, 33, diz acreditar que o folclore aparece em seu trabalho por meio da oralidade. “Meu ponto de encontro com o folclore está mais na figura do narrador do que pelos mitos do Saci, da Mula sem cabeça”.

Sant’Anna afirma que uma de suas influências é o folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), nascido em Natal (RN). Em especial o livro “Contos tradicionais do Brasil”, que reúne dezenas de contos que Cascudo colheu falando direto com o povo. Também diz “beber da fonte” de outros escritores como, por exemplo, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) e os Irmãos Grimm,  que viveram no século 19 na Alemanha.

Entretanto, o ator não tem o hábito de reproduzir as histórias que lê. Ele traz as personagens para a linguagem do caipira e o cenário é o Grajaú, lugar onde cresceu e ainda mora.

Um dos seus trabalhos se chama “As histórias do Velho Batista”, espetáculo teatral que dura o tempo que um bolo de fubá assa e costuma ser apresentado em espaços culturais e de educação. “Pego as histórias de vida e coloco na boca desse velhinho. Aí trago a oralidade, a narrativa de como esse bairro foi crescendo, trago a afetividade com o bolo, o café que é feito durante o espetáculo, o pão de queijo. São elementos dentro de uma perspectiva folclórica, dos costumes da culinária que transfiro para a cozinha”, compartilha.

Dentro da peça do Velho Batista apenas uma história faz parte da literatura. Trata-se da lenda da Mãe d’água, presente no livro de Cascudo. Todavia, o enredo é transferido do mar para a Billings, represa que margeia o Grajaú. “Trago a Mãe d’água como uma habitante da represa. Digo que ela foi encontrada lá”.

Para Sant’Anna, o trabalho é um resgate do tempo em que se ficava em volta da fogueira para ouvir histórias, do lugar de troca, da construção de valores.

O ator também chama a atenção para a falta de pertencimento da nossa identidade brasileira. Ana Cacimba pensa que é importante o trabalho de quem divulga a cultura. “Acho difícil o pessoal procurar sozinho quando não teve a vivência. Por exemplo, o funk ou o forró de teclado, não menosprezando, já vêm mastigado. Aquilo que a mídia fala para consumir, gastar dinheiro para ostentar, acaba chamando muita atenção”.

Adriana Cestari, Diego Brito e Priscila Pacheco são correspondentes do Butantã, Diadema e Grajaú

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Priscila Pacheco

Jornalista, cofundadora e correspondente do Grajaú desde 2015. Atualmente, é editora-adjunta. Curte viajar e ler. Ama gatos e gastronomia.

Diego Brito

Jornalista, correspondente de Diadema desde 2018. Geminiano, fã de rap, leitor assíduo da obra de Lima Barreto e apaixonado pelo São Paulo FC.

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