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Por: André Santos | Gabriela Carvalho | Pietra Alcântara | Raphaela Ribeiro
Notícia
Publicado em 10.04.2024 | 15:19 | Alterado em 11.04.2024 | 14:30
Com 38 anos de história, um decreto publicado em 22 de março no Diário Oficial do Estado de São Paulo determinou a extinção do programa Oficinas Culturais, responsável por oferecer atividades gratuitas de formação e difusão cultural na capital e em outras localidades do estado.
A decisão surpreendeu gestores, oficineiros, funcionários e frequentadores do programa, que será agora substituído pelo CultSP Pro – Escolas de Profissionais e de Empreendedores da Cultura.
Na capital paulista, três unidades estão em operação, duas delas nas periferias: Juan Serrano, em Taipas, zona norte, e Alfredo Volpi, em Itaquera, zona leste.
A previsão é que essas unidades parem as atividades em 30 de abril, devido ao término do contrato de gestão entre o governo estadual e a organização social Poiesis, responsável pela administração das oficinas desde 2010. Uma nova licitação para a administração dos espaços culturais não foi anunciada.
Após o anúncio do término do programa, protestos surgiram nas redes sociais e nas ruas. Em 20 de março, artistas organizaram uma manifestação em frente ao Theatro Municipal contra o encerramento das unidades.
‘Nós honramos e respeitamos todos os espaços de cultura da cidade, mas sabemos os que estão na margem não ganham foco’
Bruna Lima, 29, moradora da região de Taipas.
Artista visual, Lima relata que utiliza a estrutura da unidade de Taipas como ateliê e exposição de trabalhos, e que essa foi uma das primeiras instituições a reconhecê-la como profissional. “Infelizmente, nossa estética nos exclui de certos lugares”, comenta.
“A unidade está em um local que faz muito sentido, próximo ao Conjunto Habitacional [Cohab] de Taipas. As oficinas atendem um público de mulheres que moram ali, não dá para se perder um local como esse”. A unidade está a aproximadamente 700 metros de distância da Cohab.
Com o fim da oficina, Bruna enfrenta a perda de um dos poucos locais disponíveis para praticar sua arte, além de perder parte da renda: “Minha vida vai piorar diretamente. É como se um pouco do meu sonho [de ser artista] morresse”, desabafa.
O QUE SÃO OFICINAS CULTURAIS E QUAL A JUSTIFICATIVA PARA O ENCERRAMENTO?
Previstos para acabar no final de abril, as Oficinas Culturais disponibilizam uma gama de atividades, incluindo espetáculos de teatro e dança, exposições, palestras, performances, debates, saraus e oficinas formativas.
A Secretaria de Cultura do Estado alega que a mudança visa atender à crescente demanda por qualificação no setor da indústria cultural e criativa. Com a reformulação do programa, o CultSP passará a oferecer cursos profissionalizantes.
O fechamento das unidades nas periferias acontece em meio a um contexto de escassez de equipamentos culturais nos territórios. Segundo dados de 2022 do Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo e do Instituto Cidades Sustentáveis, 59% dos distritos da capital não possuem espaços culturais.
São 57 distritos sem centros culturais, casas e espaços de cultura; 19 distritos sem equipamentos públicos de cultura; 77 distritos sem cinemas; e 49 distritos sem espaços culturais independentes. A grande maioria, em regiões periféricas. Os que possuem não conseguem dar conta da demanda – o Grajaú tem 0,05 espaços para cada dez mil habitantes. A República tem 0,81.
Para Igor Pantoja, Coordenador do Instituto Cidades Sustentáveis, a desigualdade é uma questão histórica. “Sabemos que a distribuição dos equipamentos públicos na cidade é desigual e as áreas mais centrais historicamente acumulam as ofertas de serviços”, diz.
Na avaliação de Pantoja, a presença de equipamentos culturais de referência no centro é importante, já que é acessado por milhões de pessoas todos os dias, incluindo moradores da região metropolitana, “mas as periferias precisam de um número n vezes maior de equipamentos porque a população é muito maior, e porque é onde as pessoas moram, onde as crianças estudam”.
Segundo o coordenador do ICS, equipamentos culturais menores, localizados nas extremidades da cidade, são porta de entrada para que moradores passem a frequentar, às vezes pela primeira vez, esses espaços.
“São Paulo é o estado mais rico do país e está indo na contramão de qualquer política cultural que eu conheço”, afirma.
De acordo com a Secretaria de Cultura, o prédio onde está sediado a unidade Maestro Juan Serrano, que pertence ao Estado, será mantido para o desenvolvimento do novo programa CultSP, “com foco no desenvolvimento profissional, geração de renda e empregabilidade”.
Atualmente, o programa oferece espaço e oportunidade para artistas e moradores da região desenvolverem atividades lúdicas, que não necessariamente têm fim profissionalizante.
“É com muita tristeza que recebo essa notícia”, desabafa o pintor Manuel Marcelo Muniz, 50. Ele também frequenta a unidade Maestro Juan Serrano como aluno e como instrutor em oficinas.
A Secretaria diz, ainda, que “as atividades da Maestro Juan Serrano serão absorvidas pelo programa Fábricas de Cultura, atuando como uma extensão da Fábrica de Cultura Brasilândia.”
Contudo, o trajeto entre a Maestro Juan Serrano até a Fábrica de Cultura Brasilândia leva cerca de 40 minutos usando o transporte público, apurou a Agência Mural. Sobre isso, Bruna destaca que a região carece de equipamentos culturais. “Por exemplo, para chegar à Fábrica de Cultura Nova Cachoeirinha, são pelo menos 50 minutos de transporte público”.
Somente em 2023, a unidade Juan Serrano empregou 199 oficineiros, além de ter ofertado 238 cursos e oficinas, para um público de 21.857 pessoas, segundo dados fornecidos por nota da Poiesis.
“Tive tantas oportunidades lá. Nunca vamos ter acesso a outro espaço”, comenta Manuel. “Não sou só eu [como profissional da arte] que perco, são muitas pessoas que dependem deste local”, ele lamenta.
De acordo com a artista plástica e oficineira Liana Yuri Shimabukuro, 42, em Taipas, existem diversas ONGs que integram a Oficina Juan Serrano à programação cultural voltada ao público infantil.
“Teatro, dança, literatura, circo e oficinas, não poderão mais ser usufruídas por mais de 300 crianças (só destas ONGs). Grupos da região que ensaiam por lá também não terão mais a oportunidade de ter este espaço”, relata.
Para Shimabukuro, que desde 2014 ministra oficinas nas unidades Juan Serrano, Volpi e Oswald, o encerramento da unidade implica que os escassos espaços disponíveis para a população na região possam ser sobrecarregados pela nova demanda, a exemplo do CEU Taipas, da Biblioteca Municipal e do TEIA Taipas.
‘A região vai perder muito, pois cada um destes espaços tem sua função junto à população, principalmente na promoção do pertencimento, das memórias locais e da oportunidade de reforçar os valores destas pessoas’
Liana Yuri Shimabukuro, artista plástica e oficineira
Com o encerramento da Oficina Cultural Alfredo Volpi, o distrito de Itaquera, que concentra uma população de mais de 600 mil habitantes, passará a contar apenas com a Casa de Cultura Raul Seixas, situada no bairro Conjunto José Bonifácio, como único equipamento cultural. No distrito há três bibliotecas públicas, mas que contam com uma proposta diferente da oficina.
Esse encerramento força os moradores da região a procurar a Casa Raul Seixas para participar de atividades culturais e formativas.
Alternativamente, podem optar por se deslocar até distritos vizinhos, que também contam com poucos equipamentos culturais, como São Miguel Paulista, São Mateus, Guaianases, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista.
A aluna Nicoly Locatelli Faustino, 14, foi surpreendida pela notícia do encerramento do programa. No final de março, recebeu a informação por uma mensagem no grupo do curso de crochê, uma atividade que pratica semanalmente na instituição há mais de um mês.
Estudando o 9º ano do ensino básico, vê na oficina uma chance para relaxar. “Meu dia é bem corrido com os estudos e o crochê é o meu momento”, relata.
Tendo se mudado para Itaquera recentemente, inscreveu-se no curso logo após sua mãe descobrir o local no caminho de casa. A proximidade, cerca de 15 minutos a pé, e a oferta de atividades gratuitas despertaram o interesse da jovem.
Atualmente, com a mãe e o padrasto trabalhando durante o dia todo, Nicoly passa a maior parte do tempo sozinha. Frequentar o curso mudou essa situação. “A oficina foi o que me fez sair de casa, ver um pouco [o mundo], porque antes eu só ia da escola para casa”, conta.
“Hoje em dia, muita gente fica presa por causa do trabalho, vivendo a vida só no celular, e isso não é viver, não está tendo nenhuma experiência nova. Nada do que é ensinado lá é em vão”, avalia.
Quanto ao encerramento do espaço, a estudante manifesta estar triste com a notícia, “eu mal comecei lá, estava gostando tanto. E para mim é algo essencial de ter em todo lugar. O fechamento é algo que me chateia muito, me deixa com raiva”, desabafa.
Ela pretende buscar outras opções gratuitas na região, mas caso não as encontre, poderá desistir do novo hobby.
Em protesto contra o encerramento do espaço, a turma de crochê criou bandeiras com frases que expressam o significado das aulas para cada um. Para Nicoly, “representa uma forma de escape, diversão e de estabelecer amizades”. “Não adianta aprender arte se não há onde praticá-la, e esse lugar proporciona isso”, diz.
Antes de começar a atuar em sua área, João* (que preferiu não se identificar) realizou um curso na Volpi em 2007, o que abriu portas para o que viria a ser sua profissão. Anos mais tarde, retornou ao espaço como oficineiro, contribuindo eventualmente ao longo de 7 anos.
Segundo João, a oficina virou um polo cultural, e além das atividades oferecidas pelo próprio programa, o espaço também era cedido a projetos externos em formato de parceria, como o Senac Itaquera e escolas da região.
“Há muitas pessoas indignadas, muitos trabalhadores vão perder seus trabalhos fixos, temporários, e milhares de pessoas que vão ficar sem acesso aos bens culturais, que todos têm direito”, afirma.
Em 2023, a unidade Alfredo Volpi empregou 201 oficineiros, além de ter ofertado 215 cursos e oficinas, para um público de 22.899 pessoas, segundo dados fornecidos por nota da Poiesis.
Por nota, a Secretaria de Cultura disse que o prédio onde hoje funciona a Alfredo Volpi é alugado. Com o fim do programa em abril, o prédio será devolvido. As atividades do local serão abarcadas pelas Fábricas de Cultura da zona leste e pelas Casas de Cultura do município.
Atualmente, as Fábricas estão espalhadas pelos bairros Vila Curuçá, Sapopemba, Itaim Paulista, Tiradentes e Belém. Saindo da Alfredo Volpi, até as unidades citadas, o deslocamento varia de 30 minutos a 1 hora, via transporte público.
Ainda em março, a Bancada Feminista, mandato coletivo do PSOL na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), ingressou com uma ação popular na Justiça de São Paulo contra o encerramento do programa Oficinas Culturais, somando à mobilização de frequentadores e funcionários do programa.
Carolina Iara, co-deputada do mandato coletivo, explica que a extinção do programa é um movimento comum em relação às políticas públicas voltadas à cultura.
Ela aponta que a estratégia de modificar a Organização Social que irá gerir o programa cultural é uma manobra comum de sucateamento nestes casos.
“Houve uma descontinuidade da contratação da Organização Social que administra as oficinas culturais [Poiesis], e não se deu nenhuma abertura de edital com antecedência para que o serviço não fosse descontinuado”, diz a codeputada.
Para Carolina Iara, a interrupção do programa é um dos impactos da atual gestão política do estado, governado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), após um período de 30 anos do PSDB no estado. “Penso que a saída do PSDB, que ficou mais de 30 anos na gestão paulista, e a entrada no bolsonarismo fez com que algumas diretrizes da pasta de cultura fossem modificadas”.
O mandato cita ainda outras ações judiciais, contra mudanças no Museu da Diversidade Sexual e pedindo investigação contra demissões no setor.
Carolina Iara (PSOL) explica que o próprio mecanismo de abertura de editais para Organizações Sociais permite que esse desmonte seja realizado. Reabrir o edital para gerir o projeto é uma forma de descontinuar, atrapalhar ou diminuir a verba destinada ao serviço em questão.
‘As Oficinas Culturais existem há muitos anos e vêm tirando crianças e adolescentes da vulnerabilidade social. É preciso fazer esse diálogo com a sociedade através da nossa base social’
Carolina Iara, co-deputada estadual
Ela critica também o período de atuação do novo edital para a gestão do CultSP Pro, que substituirá as Oficinas Culturais. A seleção para a nova Organização Social foi divulgada na última semana de março e o período de atuação da nova gestão do projeto atuaria por apenas 60 dias.
“Eles acabam dando mais trabalho porque somos obrigados a questionar tudo isso”, enfatiza a parlamentar.
Jornalista, entusiasta do carnaval, do futebol de várzea, de bares e cultivador assíduo da sua baianidade nagô! Correspondente do Jardim Fontalis desde 2017.
Jornalista, comunicadora visual, mestra em Mídia e Tecnologia e pós-graduada em Processos Didático-Pedagógico para EaD. É correspondente do Jardim Marília desde 2019. Também é cantora de chuveiro, adora audiovisual e é louca por viagens.
Jornalista, social media. Formada em Jornalismo e pós graduada em Styling e Direção de Arte. Amante de brechós e moda 0800. Gosta de gravar stories loucos e assistir vídeos no YouTube. Correspondente da Vila Medeiros desde 2019.
Jornalista e pós-graduanda em jornalismo digital e contemporâneo, com trabalhos publicados na Folha, HuffPost Brasil, Revista AzMina, The Intercept, Terra e Agência Pública. Nascida e criada na zona leste, é correspondente de Itaquera desde 2023.
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