Naná Prudêncio / Divulgação
Por Paulo Talarico | 31.07.2020
Reportagem: Lucas Veloso
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 31.07.2020 | 16:17 | Alterado em 31.07.2020| 16:54
Durante os últimos meses, a pandemia de Covid-19 escancarou problemas vividos nas periferias da Grande São Paulo, mas também como as redes de solidariedade atuaram. O tema foi objeto do trabalho de documentaristas com produções lançadas nos últimos dias
Tempo de leitura: 7 min(s)No mês de março, a documentarista Naná Prudêncio, 39, começou a se envolver com ações para ajudar famílias que sofreram os impactos da pandemia de Covid-19. Moradora de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, ela acompanhou a entrega de cestas básicas em bairros próximos da sua casa, como o Morro do Sabão e Jardim Leme.
Foi quando decidiu que era preciso registrar as realidades nas periferias durante a pandemia. A ideia de Naná foi documentar os maiores impactos nas comunidades e o resultado é o documentário ‘Pandemia do Sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil’, será lançado na terça-feira (4).
Ela não foi a única. Durante estes mais de quatro meses de isolamento social, diversos moradores se debruçaram em fazer um registro histórico deste momento.
Em comum, a percepção sobre como as dificuldades dessas regiões nas bordas da capital e da Grande São Paulo ficaram ainda mais escancaradas e a falta de uma ação clara do poder público para reduzir os impactos da pandemia.
A Agência Mural conversou com alguns desses produtores que lançaram nos últimos dias trabalhos nos últimos dias e mostram e abordam em documentários, curtas e entrevistas a desigualdade, os medos de contágio na família e a solidão durante a pandemia.
O documentário produzido por Naná busca narrar como moradores e moradoras de diferentes regiões periféricas se organizaram para enfrentar a crise econômica e de saúde que expôs a disparidade social e racial no país.
“Estava observando a inflamação que o coronavírus trouxe de dentro da periferia. Minha ideia foi dar espaço e voz para essas pessoas que estão sendo ajudadas e quem está ajudando no sentido ‘nós por nós’”, relata.
Ela usa a metáfora de inflamação para explicar o que mudou com a pandemia. “Tudo inflamou, como o nosso descaso com o sistema de saúde, o descaso com as mães pretas, o descaso com a fome e educação, o racismo e o genocídio. A pandemia é mais que o vírus”.
Uma das coisas que Naná faz questão de ressaltar é que o coronavírus intensificou os problemas, já que a desigualdade social, a fome e a violência são outras questões que afetam os bairros mais pobres. “Chegamos em 2020, mais de 500 anos depois, com os pretos ainda passando fome e morando na beira do rio, num lugar precarizado”.
Fundadora da Zalika Produções, Naná acompanhou ações assistenciais em várias partes da Grande São Paulo, como o Jd. Elba e Favela do Rio Claro, em Sapopemba, zona leste, Heliópolis, no distrito do Sacomã, além da Favela da Godoy, no Capão Redondo, zona sul. O Morro dos Macacos, no limite entre Diadema e São Paulo também foi visitado.
Sem financiamento, a realização da produção foi independente, custeada com recursos próprios, a colaboração de profissionais voluntários e de moradores que contribuíram até com almoço e combustível para a locomoção da equipe.
“Tenho a câmera, que é a minha arma. Com ela, posso ajudar as pessoas a engatilhar e atirar para mostrar tudo isso que acontece com a gente, que não é de hoje”, argumenta.
Entre as histórias que acompanhou, a que mais chamou a atenção foi a da pernambucana Cicera Mariana, 35, que vive com 12 filhos e dois netos na beira de um córrego na zona leste da cidade. Os moradores dividem dois cômodos e não contam com auxílio emergencial e nenhuma assistência governamental.
Sobre a situação, Naná diz que isso justifica a ausência de dignidade, situação comum nos bairros mais pobres da cidade. “O Conselho Tutelar tem coragem de bater na porta da casa dela para questionar porque as crianças não estão indo para escola, mas não tem coragem de ver os motivos, falta sapato, falta comida”.
Depois de meses de gravação, Naná diz que os aprendizados foram que “a favela só tem ela” e que “o aquilombamento” é necessário para manter todos vivos e com uma vida digna, se referindo a um conceito que vem da ideia de quilombos em reconectar com a ancestralidade e se proteger coletivamente.
“Se a gente não se ajudar ninguém vai ajudar. Temos que valorizar nossas lideranças e cobrar as coisas, votar bem e ver que nossa força alimenta o que fazemos”, acrescenta.
Fotos de Naná Prudêncio durante a produção de “Pandemia no Sistema” O lançamento do documentário será segunda-feira (4), às 19h, na página do Alma Preta Jornalismo no Facebook.
No Grajaú, na zona sul de São Paulo, Pedro Ariel Salvador da Silva, 19, morador do Parque Planalto e produtor audiovisual no coletivo PEM (Periferia em Movimento) e o gestor de conteúdos na mesma iniciativa, Thiago Borges, 32, morador do Jardim dos Manacás, também produziram um filme sobre a pandemia.
A produção ‘Interrompemos a Programação (?)’ quer debater a influência da mídia na formação da identidade de moradores e moradoras das periferias. E a partir da construção desses sujeitos periféricos, como isso impacta no fermento de mídias nas periferias.
Para dar conta da produção, o PEM usou recursos do edital VAI (Valorização de Iniciativas Culturais). Eles foram selecionados antes da pandemia.
O coletivo entrevistou pessoas que estão em diferentes reivindicações nas periferias paulistanas, como o machismo, o racismo, a resistência indígena, as lutas LGBT, especialmente da população trans, dos direitos de pessoas vivendo com HIV, pela ocupação da cidade em geral e como elas foram afetadas pela crise sanitária da Covid-19.
Para a dupla, a pandemia mostrou ainda mais o papel da mídia nas periferias, inclusive a independência em distribuir informação útil e confiável para enfrentar o momento.
O título traz um questionamento sobre o dia a dia das periferias. “Nós interrompemos de fato uma programação? Existia essa programação?”, reflete Thiago.
De olho no pós-pandemia, Thiago diz que a crise escancarou desigualdades históricas e ampliou o isolamento social de quem já era marginalizado, o que chama de ‘isolamento de direitos’.
“Nós que somos da periferia pudemos ter mais certeza ainda do descaso do governo. Também enxergamos a importância da educação e da saúde e o quanto isso chega de maneira precária com quem vive nas margens”, afirma Pedro. “As quebradas estão sendo as mais afetadas durante esse período justamente pela falta de estrutura que nos é dada”.
O produtor relata uma série de desafios enfrentados pelos trabalhadores e trabalhadoras na cidade que precisam sair de casa para garantir o sustento das famílias.
Ele cita mães que precisam trabalhar e não podem deixar os filhos na escola, crianças e adolescentes que não conseguem estudar pela internet.
Pessoas que tiveram o ‘privilégio’ de trabalhar em casa, mas ao mesmo tempo não conseguem dar conta da demanda de trampo por simplesmente não ter um local adequado para se dedicar. Também diz que as pessoas não saem necessariamente transformadas da pandemia.
“Há exceções, claro, mas a meu ver, o pós-pandemia vai permitir olharmos para um fosso ainda mais profundo. De um lado, os individualistas, aqueles que fazem seus ‘corres’ sem olhar para o lado, estimulado pelo sistema político e econômico vigente. E do outro, quem já atua na coletividade, ainda mais empático e buscando meios para construir um mundo de possibilidades reais” – Thiago Borges, do Periferia em Movimento.
Se por um lado, os impactos foram bem negativos, Pedro ressalta que consegue enxergar a potência da periferia quando há união.
“Quando a gente se junta para fazer algo, seja distribuindo cesta básica, marmita, máscaras ou álcool em gel. Isso me faz ter um fundinho de esperança e perceber que a gente tem que lutar sim, mas pra gente lutar, precisamos nos fortalecer antes”, completa.
Uma das falas é do educador social Will Ferreira, morador da zona sul, que definiu a entrega de cestas básicas um ato revolucionário, por conta do impacto da crise nas periferias.
Em março deste ano, quando a ideia da pandemia ficou mais presente, a dupla formada pelo corretor de plano de saúde Hilário Bispo, 53, e Luciano Ferreira Alves, 44, decidiu contar como a crise sanitária mudou a vida de moradores nas periferias da capital paulista. Foi assim que nasceu “Retalhos de Solidão”, uma série sobre as mudanças no cotidiano e os desafios do isolamento.
Morador da Vila Campo Grande, no distrito de Santo Amaro, na zona sul, Hilário conta que uma das principais intenções foi documentar esse período, onde, segundo ele, as pessoas que vivem nas periferias estão mais fragilizadas. “As pessoas têm limitações para cumprir o isolamento social, sofrem com falta de dinheiro também. Uma das ideias foi acolher essas histórias e produzir um documento histórico sobre a pandemia”.
Com a falta de dinheiro, a alternativa foi pensar em um formato de baixo custo. A produção conta com 30 entrevistas em cinco episódios, feitas à distância com pessoas de várias partes da cidade, como vizinhos do próprio bairro e Cotia, munícipio da Grande São Paulo. O material final está disponível no YouTube.
https://www.youtube.com/watch?v=pZUHQmpSWsA
Para o documentarista, a ausência do Estado enfrentada pelas pessoas nas periferias tende a piorar nos próximos meses. “Depois da pandemia virá uma crise econômica, além disso, já temos 90 mil mortos e cada morte é uma devastação. Não vejo nenhuma iniciativa do poder público no sentido de melhorar a situação”, opina.
Um exemplo usado por ele diz respeito à vacina. Hilário diz que os bairros mais pobres são pouco atendidos e isso deve se repetir quando a vacina estiver pronta. “Não vejo nenhum motivo para acreditar que todas as pessoas terão acesso à vacina no primeiro momento. Certamente a periferia será mais uma vez preterida nesse tipo de coisa”.
Moradoras da periferia da zona sul de São Paulo, Heloísa em Parelheiros e Juliana, na Vila Clara, foram duas dos 200 selecionados pelo projeto Curta em Casa do Instituto Criar. As obras “Uma Fase” e “Alternativas felizes para quando o sol não vem” abordam aos problemas, os medos de contágio na família e a solidão nas periferias de São Paulo durante a pandemia.
Na cidade de Suzano, o produtor audiovisual Douglas Cordeiro, 26, criou o roteiro e dirigiu o curta-metragem ‘E daí?’, produzido em casa, o filme é baseado na história da família do diretor, que recebe a notícia de que um familiar está com suspeita de coronavírus.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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