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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Estela Aguiar | Ingrid Fernandes

Arte: Magno Borges

Edição: Paulo Talarico e Tamiris Gomes

Publicado em 12.08.2022 | 15:55 | Alterado em 15.08.2022| 11:47

RESUMO

Do proibidão ao consciente, o funk movimenta a cultura nas periferias e cada vez mais se torna também uma música característica das quebradas de São Paulo. Mas quais os desafios das mulheres que se destacam com o estilo e por que é tão difícil encontrá-las nas playlists

Tempo de leitura: 9 min(s)
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As mulheres fizeram e fazem história no funk brasileiro. Versos como “Late que eu tô passando”, de Valesca Popuzada, “Sadomasoquista”, da Deize Tigrona, “Boladona na esquina”, da Tati Quebra Barraco, ou a mais recente “Nós tem um charme que é dahora”, da MC Drika, são símbolos da popularização do gênero pelas vozes femininas.

“Elas contribuem não só como intérpretes, mas há cada vez mais mulheres debatendo academicamente [o estilo], e sendo compositoras, produtoras, inseridas no ecossistema da música”, explica Tamiris Coutinho, 31, carioca, autora do livro “Cai de boca no meu b*c3t@o: o funk como potência do empoderamento feminino”.

Formada em música e negócios pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, ela adverte que, apesar desse crescimento, o cenário segue desigual. “As mulheres não ganham tanta repercussão como os homens.”

Para entender o corre e a visão dessas funkeiras dentro de uma das principais indústrias fonográficas brasileiras, a Agência Mural conversou com mulheres que têm se destacado na cena, responsáveis por impulsionar o funk paulista nos últimos anos.

O corre das minas do funk paulista @Magno Borges/Agência Mural

Do tambor ao tamborzão

Nascido em terras periféricas do Rio de Janeiro, o funk começou a estourar na capital paulista nos anos 2000, arrebatando os corações paulistanos com o sucesso de músicas cariocas e da Baixada Santista (como esta relíquia do MC Duda do Marapé, poeta do povo).

A dançarina e professora de funk Renata Prado, 32, vive no Itaim Paulista, fundão da zona leste de São Paulo, e é parte da primeira geração de funkeiras da capital. Ela conta que dançava axé, ritmo forte da cultura periférica na época. Mas, por volta de 2005, ela conheceu o funk e migrou de baile.

“Eu frequentava fluxos como Nação Tan Tan, na Vila Jacuí, e Nitro Night, em Santo Amaro, que são bailes antigos, anteriores ao movimento do funk local”, diz. A caminhada artística dela e a cena nasceram praticamente juntas. “Acompanhei todo esse cenário da evolução de fluxo de rua, pra baile funk, pro paredão .”

Renata Prado é dançarina e também dá aulas sobre o funk @Luan Batista/Divulgação

Renata criou o espetáculo de dança “Dos Tambores ao Tamborzão”, que remonta a história do funk por meio da cultura afro. Com o sucesso do evento, ela passou a trampar de vez na cena por volta de 2015. De dançarina e coreógrafa profissional à educadora, ela conta que o preconceito ainda é um dos principais desafios para quem ganha a vida com o funk.

“Precisamos convencer as pessoas de que funk é cultura, é arte, é uma arte da periferia, que as pessoas costumam marginalizar”

Renata Prado, dançarina e professora de funk

A educadora relaciona a discriminação do funk à discriminação de um povo. “A juventude negra, que historicamente é marginalizada desde a época do samba, desde a época do hip-hop, vive a bola da vez com o funk.”

No sentido de expandir uma visão positiva sobre o movimento, mais recentemente, em 2019, Renata lançou o projeto “Academia do Funk”, no qual traz a história, a linguagem, a dança, e aborda também questões sociais, políticas públicas e as narrativas feministas que atravessam este movimento musical.

O projeto tem esse nome justamente por ensinar o funk de forma acadêmica, teórica, e de trazer a prática da dança como uma academia, onde se trabalha o corpo. Renata tem oferecido aulas presenciais na Casa Hub Preta .

Essa busca por transmitir o que é o funk também guia uma galera que está chegando junto na cena, como a MC Lalao.

No consciente pra fazer a mensagem chegar

Com rimas que se dedicam a expressar o cotidiano, o funk comunica desejos e dilemas de quem vive nas bordas das grandes cidades. A linguagem rebelde, muitas vezes elaborada no improviso, traz à tona questões que a sociedade gostaria de manter debaixo do tapete, como sexo, violência, economia e política.

Entre tantos subgêneros do funk, como o proibidão, o brega funk, funk ostentação e o trap funk, Larissa Manoel, 25, escolheu a vertente do funk consciente. “É uma forma de cantar as coisas da quebrada com outro olhar, de colocar a realidade na caneta”, define ela. “Com um olhar que a gente tem, não aquele olhar, por exemplo, da mídia, que vê os moleques e já diz ‘ladrões!’.”

MC Lalao do TDS tem clipes gravados onde vive, em Taboão da Serra @Arquivo Pessoal

Larissa é MC Lalao do TdS, em referência a cidade onde mora, Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Hoje ela não se sustenta apenas com o funk, desenrola bicos com vendas, aulas de judô e defesa pessoal, carreto, segurança e servente de pedreiro.

Há dois meses, ela saiu de uma fábrica de kimono onde trabalhava e está se virando com o dinheiro que ganha com a música. “Mesmo assim estou na bala de ver o que eu vou fazer para subir uma grana, porque não é sempre que vou ter shows ou eventos”, conta.

Entre 2015 e 2016, Lalao entrou em contato com o universo do rap, mas a identificação rolou mesmo com o funk. “Comecei a rimar desde muito novinha por causa do meu irmão. A gente brigava rimando, então a arte de rimar pra mim tem que ser mil grau.”

“Muitas pessoas na quebrada carregam um talento nato para a rima. Mas nem todo mundo consegue ganhar dinheiro, fazer carreira com poesia e com o funk”

MC Lalao do TDS

Apesar das dificuldades, Lalao segue em busca de espaço. Em 2020, a artista lançou o primeiro som gravado em estúdio, a música Papaléguas. No ano seguinte, soltou mais um hit, Princesa do Gueto, que contou com a produção da renomada Badsista .

Entre as inspirações para continuar cantando, a artista admira tanto os famosos do funk, como pessoas que convivem com ela. “Tem minhas parceiras que me inspiram, minas da minha quebrada que vivem o negócio e me identifico muito. Mas também levo comigo o que canta MC Marcelly e Deize Tigrona.”

Quando o assunto é a visibilidade do trabalho, MC Lalao conta que o que mais pesa é conseguir apoio na região. “Aqui na minha quebrada todo mundo me conhece, sabe que eu sou MC, mas tem gente que provavelmente nunca deve ter se inscrito no meu canal, nem deve saber que eu tenho clipe.”

Por outro lado, MC Lalao diz que ter mais mulheres fazendo funk possibilita que outras apareçam. “Vai gerar oportunidade para outras minas, de querer fazer a mesma coisa”, diz. No entanto, essa abertura ainda esbarra em uma série de preconceitos.

MC Tha é cria de Cidade Tiradentes @Divulgação

Ousadia e ambição é o meu lema registrado

MC Tha, 29, começou a cantar funk na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Timidamente e empurrada pelos amigos, foi convidada para cantar nos bailes de várias comunidades. “Sou uma mulher racializada, não padrão, da periferia, vim do funk, sou de terreiro e estou criando uma linguagem totalmente nova”, diz a cantora.

Aos 18 anos, fez uma pausa na carreira para estudar e trabalhar. Depois de três anos dessa correria, lançou a faixa Olha Quem Chegou, um funk quase ostentação banhado no voltmix (aquele batidão clássico) e elementos pop produzido por Jaloo.

A maior cartada da MC Tha para fazer a carreira deslanchar foi “fugir do óbvio e das caixas que queriam me enfiar”.

“Para uma mulher, qualquer mercado é duro. Ainda mais quando você não está disposta a ceder a violência de não estar totalmente confortável”

MC Tha

Para Tha, a discussão é profunda. “A mulher tem prazo e data de validade, e o mercado o tempo todo e de todos os lados reproduz isso, por mais que a pauta empoderamento, quebra de padrão, feminismo e tal estejam em alta, as pessoas que estão no front são as mesmas de sempre”, diz ela. “A diversidade vai até ali.”

O novo projeto dela, “Meu Santo É Forte”, tem o intuito de tentar inventar novas realidades para mulheres que passam pela mesma trajetória. O objetivo é continuar um Brasil que “tinha a Alcione apresentando um programa mensal na TV aberta. Onde a Leci Brandão ia ao Faustão cantar música afro-religiosa. Onde a intolerância e o racismo religioso sejam pauta pop também”.

“As pessoas dizem que, pela qualidade do meu trabalho, eu deveria ter mais reconhecimento”, aponta Tha. “Concordo, mas penso na ingenuidade dessas pessoas de não conseguir fazer essa análise de mercado pensando em todas as características que me rodeiam.”

Essas são as meninas que os meninos gostam?

Tamiris Coutinho comenta que o funk é protagonizado por homens e cita um exemplo. “Ao entrar numa playlist de funk do Spotify, verá que várias músicas que estão lá são produzidas e cantadas por homens. São poucas mulheres dentro daquelas playlists.”

A percepção dela não está equivocada e não está restrita ao funk. De acordo com o estudo USC Annenberg sobre representação de mulheres na indústria da música, financiado pelo próprio Spotify em março de 2021, apenas 1 em cada 5 artistas nas paradas de sucesso é mulher.

Questionado sobre qual seu papel diante desse cenário, o Spotify disse que está comprometido em criar e apoiar uma indústria de áudio diversificada. Como exemplo, cita ter colocado a MC Drika exposta na Times Square, um dos principais cartões postais de Nova York (EUA).

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Além disso, a plataforma elegeu Ludmilla, a primeira cantora negra da América Latina a alcançar mais de 1 bilhão de streams somente no Spotify, como a artista embaixadora da EQUAL Brasil .

Depois da campanha, “o crescimento da audiência de criadoras e artistas locais, especificamente na playlist brasileira, cresceu 47% nos últimos anos”, afirma a empresa em nota.

Por outro lado, na principal playlist editorial de funk criada pelo próprio Spotify, a Funk Hits, com mais de 4 milhões de curtidas, apenas 1 das mais de 40 músicas é cantada por intérpretes mulheres. Mesmo com a campanha e os sucessos emplacados, não há nenhuma música da MC Drika, Ludmilla ou Anitta na principal curadoria do gênero que, segundo a plataforma, é também o ritmo preferido dos ouvintes nacionais.

Não faltam nomes que, de norte a sul do país, poderiam entrar nesta playlist. MC Menorzinha, MC Mayara, MC Pocahontas, MC Marcelly, MC Beyonce. Pode pá que a gente conhece! Montamos uma playlist para que você possa escutar mais de 100 faixas de funk feito por mulheres.

“O funk é cultural, social, plural, dando espaço para todos se manifestarem e falarem sobre o que vivem, inclusive impactando muitas mulheres que vão fazer parte desse movimento”, conclui Tamiris.

E por falar na manifestação de vivências plurais, as Irmãs de Pau são uma referência da cena.

Irmãs de Pau são de Barueri, na Grande São Paulo @Lucas Silvestre/Divulgação

Hackeando o cis-tema e jogando o rabetão

Dispostas a quebrar barreiras, as Irmãs de Pau, dupla de travestis composta por Vita Pereira, 25, e Isma Almeida, 24, cantam sobre vivências dentro do funk putaria, também conhecido como proibidão. “A linguagem escrachada e periférica tem um poder pedagógico de diálogo muito sincero e verdadeiro nas comunidades”, afirma Isma.

Ouvinte do batidão e hoje artista dentro dele, Vita considera que o gênero ainda tem muito o que evoluir quanto a aceitação de corpos e sexualidades diversas. “As opressões nesses espaços são mais veladas, se materializam nas piadas, olhares e posturas”.

Ao mesmo tempo, ela percebe mais “corpas dissidentes” produzindo funk. “Estamos vindo de bonde, apesar de assustá-los, eles não nos deixam em paz”, diz.

A dupla lançou o álbum “Dotadas” em 2021. Na época, Caê Vasconcelos, correspondente da Agência Mural, contou um pouco da história das Irmãs de Pau nesta reportagem. De lá para cá, as artistas rodam o país fazendo shows.

“Trazer nossas vivências e conseguir alcançar lugares, bate de frente com um lugar de incômodo, mas acho também que traz um alívio para nós travestis”

Isma Almeida

A presença travesti e o desejo dos “travequeiros”, homens cisgêneros que gostam de se relacionar sexualmente com travestis na definição delas, é algo que traz menos problemas do que antes. “Vejo cada vez mais travestis namorando, tendo família, emprego, mas afeto… não”, conclui Isma.

Em 2021, São Paulo foi o estado brasileiro que mais registrou mortes de pessoas transgêneras, segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Apesar disso, as músicas abordam menos essa violência e muito mais as experiências e as vivências travestis.

Com uma boa dose de deboche, que não poderia faltar. “Dentro e fora do palco, nós somos o pior pesadelo para todos eles”, diz Vita Pereira.

“Não faltam femilinidades produzindo funk, o que falta é sermos consumidas, que nossas letras e ideias sejam compradas e colocadas em prática”, diz Isma @Lucas Silvestre/Divulgação

Bonde das minas que andam no ouro

Enquanto o preconceito segue sendo um dos maiores empecilhos para homens e mulheres do funk, um dos caminhos que Renata Prado encontrou para reescrever essa história foi a articulação com funkeiras do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, estados onde a cena local ferve.

A FNMF (Frente Nacional de Mulheres do Funk) é a primeira organização política feminista do movimento no Brasil, e tem como proposta pensar políticas públicas, discutir questões sociopolíticas e educacionais em prol da cultura do funk.

A jornalista e multiartista Fernanda Souza (@correrua_), moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, é uma das integrantes da FNMF.

Com um acervo de mais de 1.000 fotografias que registram o cotidiano das periferias e da cena cultural funkeira, parte do trabalho dela está exposto no Centro Cultural de São Paulo até o dia 22 de agosto. “Meu acervo conta história”, diz sobre a exposição. “Para os do passado, os de hoje e os que vão colar.”

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Estela Aguiar

Jornalista. É fiel à crença de que da ponte pra cá, o jornalismo é revolucionário. Apaixonada por carnaval, filmes e séries. Correspondente do Jardim João XXIII desde 2019

Ingrid Fernandes

Midiáloga formada pela UNICAMP, foi responsável pela estratégia de distribuição de conteúdos e comunidades na Agência Mural de 2020 a 2022. Cinéfila, tira umas fotos, curte ouvir/escrever histórias e fazer playlists.

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