Magno Borges/Agência Mural
Por: Lucas Veloso
Reportagem: Lucas Veloso
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 06.10.2020 | 18:36 | Alterado em 14.12.2021| 21:22
Em São Paulo, 6.000 estudantes da rede pública são estrangeiros. Além das dificuldades em se adaptar com a língua, a pandemia impôs novas dificuldades como a falta de acesso à internet, falta de acompanhamento e, por fim, a falta de alimentação em famílias que sobreviviam com o trabalho informal
Tempo de leitura: 9 min(s)Em uma casa de dois cômodos vive a imigrante nigeriana Amaka Anele, 6, com dois irmãos e os pais. Longe da escola há seis meses, ela diz que não gostou da nova rotina. “É ruim ficar só aqui”, resume.
Moradora de Guaianases, na zona leste de São Paulo, há cerca de três anos, ela é estudante do primeiro ano do ensino fundamental na rede municipal.
Amaka passa os dias em brincadeiras com os irmãos e sem nenhum contato com a escola em que estuda no bairro, pois não há celulares disponíveis para as atividades escolares. A mudança na rotina não quer dizer que ela não sinta falta da sala de aula. “Lá eu tenho meus colegas. Cadê eles?”, questiona.
Segundo os pais, desde o dia 16 de março, quando as aulas de escolas públicas e particulares de São Paulo foram suspensas, por causa dapandemia de Covid-19,a menina não é acompanhada pela escola. Com a medida, a garota imigrante ficou sem aulas e sem alimentação que recebia da merenda.
No bairro, outros relatos de pais e mães nascidos em outros países dão conta da ausência do poder público frente à população imigrante. Desde o começo da pandemia, a situação das aulas nas periferias têm sido um problema por conta da falta de infraestrutura e do acesso à internet. Para essas famílias imigrantes, de maioria negra, contudo, a situação tem outros agravantes.
Desde maio, por exemplo, um decreto publicado pelo governo de São Paulo tornou obrigatório o uso geral e obrigatório das máscaras, mas a falta de dinheiro impede que essa parcela acesse o item básico de proteção nas ruas do bairro.
Duas ruas depois da casa de Amaka mora o haitiano Ronal Joseph, 46. Ele trabalha com atendimento ao público na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no bairro da Luz, região central da cidade. Além disso, é estudante de direito e tenta fazer as aulas por meio do celular já que não tem computador para ajudar na tarefa.
Pai de três meninas, uma de 14, outra de 2 anos e uma com 10 meses, está em isolamento social desde março e relata que no primeiro momento ficou assustado com a pandemia.
Além do receio da saúde ao seu redor, tinha medo da situação no Haiti, onde ainda vive parte da família, como a mãe e os irmãos. Oficialmente, 229 pessoas morreram no país da América Central.
Outro desafio é a rotina das filhas. Em casa, não conseguem acompanhar os estudos e ficam tristes por não irem às escolas e nem à igreja.
Apesar disso, relata que a vida não parou para quem veio do Haiti e vive como imigrante. “Conversei com alguns haitianos que estão trabalhando. Muitos de nós, haitianos são pedreiros, ajudantes de obras e da construção civil”, comenta.
A escolha de morar em Guaianases, que possui 54% da população composta por negros, tem alguns fatores. Como Ronal, outras centenas de imigrantes moram no bairro e escolheram a região por conta do custo de vida.
Segundo dados oficiais obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) em junho, na rede municipal de Guaianases, 35 alunos de outras nacionalidades estão matriculados. Bolivianos, haitianos e venezuelanos são a maioria.
O distrito é um pequeno retrato da cidade. Atualmente, o município possui cerca de 6.000 estudantes estrangeiros, sendo a maioria imigrantes bolivianos e haitianos. Os números tendem a ser maiores, pois há moradores que não estão regularizados.
Do Haiti, os imigrantes chegaram ao bairro depois do terremoto que devastou o país e deixou cerca de 300 mil mortos e mais de 300 mil feridos em janeiro de 2010.
No caso dos venezuelanos, eles cruzam as fronteiras dos dois países, partindo de Santa Elena de Uiarén para entrar em solo brasileiro em Pacaraima, cidade no norte de Roraima. Com algumas peças de roupas, documentos e poucos objetos pessoais, fugiam da crise política instaurada após a morte de Hugo Chávez, em março de 2013.
Esse novo contingente de moradores driblou dificuldades e conseguiu se manter por meio de apoio e também do trabalho informal. Porém, a situação piorou desde o começo da crise sanitária quando a economia foi impactada e moradores das periferias sentiram o agravamento do desemprego.
“O fato de estarem menos inseridos na sociedade cria dificuldade para entender os acontecimentos. Por exemplo, entender o auxílio emergencial de R$ 600, desde a burocracia com os documentos”, afirma Sidarta Borges Martins, 44, diretor financeiro do Adus, instituto de Reintegração do Refugiado.
A organização oferece para os refugiados aulas de português, inserção no mercado de trabalho e orientação jurídica.
“A gente vê muitos agentes públicos que ainda não aprenderam a lidar com as especificidades destas crianças. A escola pública tem um papel importante, como a vacinação e alimentação delas”, ressalta Sidarta.
Para ele, a inclusão digital também não chegou para essa parcela da população, o que excluiu crianças e adolescentes das atividades remotas. “Muitos imigrantes têm celulares, mas não são de última geração. Outros nunca tiveram computador, sobretudo os que vieram da África”, acrescenta. “Essas crianças longe da escola vão ter impacto para o resto da vida”, relata.
Para Sidarta, o racismo brasileiro é outro fator que impede o acesso dos imigrantes e refugiados aos direitos.
Ele cita que, por exemplo, no Haiti, os negros ocupavam altos cargos e outros espaços da sociedade que, no Brasil é restringido socialmente aos brancos. “Muitos deles vieram de países que não sofrem racismo pela cor da pele e descobriram isso aqui”.
Zuri Bintu, 7, mora com os pais em Guaianases. Aluna do segundo ano do ensino fundamental na rede municipal, a menina ficou sem aulas e sem acesso ao ensino que teria na escola. Na casa dela não há computadores e os dois celulares ficam os pais. “Não tem a professora e nem lição com os meus amigos”, diz.
Doutora em Educação, Arte e História da Cultura e professora da rede municipal Adriana de Carvalho Alves Braga, 39, acompanha a situação dos imigrantes na rede pública de ensino da capital paulista.
Moradora da Brasilândia, zona norte, ela escreveu uma tese sobre as crianças imigrantes nas escolas da cidade e vê um cenário mais delicado com a pandemia. “Percebo a xenofobia e o racismo como as principais barreiras para acessar os direitos básicos, como a educação”, comenta. “Neste sentido, os movimentos sociais são fundamentais para viabilizar esses acessos”.
A pesquisadora relata que não acredita em educação a distância, mas sim em entrega de conteúdos, pois sem as presenças físicas não é possível completar o ciclo educacional ideal.
Apesar disso, diz que as crianças imigrantes encontram dificuldades em tarefas mais simples no período da pandemia, como o acesso às plataformas disponibilizadas. “Falta esforço do poder público para lidar com essa população. O ensino, colocado desta maneira de hoje, acirra as desigualdades sociais”, pontua.
Na escola em que a filha estuda, a direção a chamou para gravar um vídeo em espanhol com explicações sobre o cartão da merenda e outros processos que as famílias imigrantes estavam com dificuldades para entender.
“É preciso conhecer a comunidade. Neste sentido, a prefeitura e o estado não fizeram isso e por isso não conhecem as realidades”, observa.
Não é por falta de legislação que isso acontece. A Lei 13.684, de junho de 2018, trata da assistência emergencial para imigrantes que vieram para o país por conta de crise humanitária.
Ela garante, entre outras coisas, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos para os imigrantes no país.
“O atendimento às demandas imigrantes não é um favor que o país faz, mas direito garantido. Não se deve questionar”, completa a pesquisadora.
A dificuldade de garantir esse direito para crianças imigrantes também tem sido um desafio para os educadores. O professor Reinaldo Andrade*, 45, mora em Itaquera, na zona leste.
Na região, dá aulas em duas escolas, sendo que uma fica em Guaianases, bairro vizinho. Lá, diz que as dificuldades dos alunos com a aprendizagem remota é vista no cotidiano, desde março.
O docente relata que há cerca de seis meses não mantém contato com os alunos que são imigrantes, por falta de estrutura. Reinaldo conta que a maioria dos estudantes vive em ocupações, onde não a internet não chega. Desde o começo da pandemia, pessoas despejadas nas periferias têm migrado para esses locais nas periferias.
“As dificuldades encontradas por eles [imigrantes] se parecem com as dificuldades enfrentadas pelos estudantes pretos da quebrada”, afirma. “Esse é um fato que faz com que esses alunos não tenham contato com a gente e nem com aquelas atividades que nós estamos realizando na pandemia”.
Uma aluna do nono ano é usada pelo professor como exemplo. Segundo ele, a estudante não está no grupo de WhatsApp criado para repassar recados e atividades. “Esse é um dos principais dramas. E olha, que quem está no nono ano tem mais autonomia, pois estão entre 13 e 15 anos. Agora, imagina os mais novos, que ainda dependem dos pais para acessar. É bem complicado”, conta.
Questionada sobre o número de acessos nas plataformas de ensino e quais os materiais disponibilizados para que os imigrantes pudessem acompanhar as aulas, a Secretaria Municipal de Educação (SME), respondeu que traduziu parte dos cadernos pedagógicos Trilhas de Aprendizagens para três idiomas: inglês, espanhol e francês com o objetivo de atender os estudantes imigrantesda rede municipal de ensino e suas famílias.
A ação é fruto de parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), UNICEF e Organização Internacional Migrante e Organização internacional para as migrações, ligada a ONU.
De acordo com a prefeitura, a iniciativa é voltada aos alunos que estão em processo de alfabetização na língua portuguesa. Ao todo, cerca de150 professores se mobilizaram e voluntariamente se dedicaram a realizar as traduções. Os cadernos estão disponíveis também noPortal SMEpara que as atividades sejam desenvolvidas em casa.
Também disse que a ação pretende tornar acessível os materiais pedagógicos e orientações às famíliasimigrantes durante o período de distanciamento.
O haitiano José Davi, 37, atuava como pedreiro antes da pandemia. Em março, perdeu o posto de trabalho. Sem renda e com duas filhas, tentou o auxílio emergencial, mas não conseguiu. No caso dele, a solução foi buscar as cestas básicas doadas por uma igreja evangélica no bairro.
“O governo não pensou na gente, né. Nem nos nossos filhos. O que eles iam comer?”, comenta. “Sem esse arroz e feijão eu não ia saber como conseguir comida para elas”, acrescenta.
A falta de alimentos é outra dificuldade enfrentada pelas crianças e por suas famílias no bairro. Há quem conseguiu o auxílio emergencial de R$ 600. Existem também aqueles que não conseguiram o benefício por conta da falta de documentos de identificação e outras informações.
Na maioria das vezes autônomos, em Guaianases, uma das saídas encontradas pelos imigrantes foi buscar as ações solidárias promovidas por igrejas evangélicas do bairro ou recorrer a postos de serviços informais que continuaram na pandemia, como funções na construção civil e nos serviços de entrega por aplicativos.
Solicitados via Lei de Acesso à Informação, os dados comprovam a procura por serviços básicos. Entre 19 de março a 17 de julho deste ano, foram realizados 1.760 atendimentos no CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), sendo 328 presenciais e 1.432 de forma remota.
As principais demandas atendidas nesse período foram a regularização migratória e documentação (25%), informações sobre doações (24%), serviço social (19%), informações sobre o auxílio emergencial (9%) e outras demandas (23%). No mesmo período do ano passado, foram realizados 2.439 atendimentos.
Segundo a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), as palavras imigrantes e refugiados têm significado distintos.
Refugiados são pessoas que estão fora de seus países de origem por temores de perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias que perturbam seriamente a ordem pública e que, como resultado, necessitam de “proteção internacional”.
As situações enfrentadas são frequentemente tão perigosas e intoleráveis que estas pessoas decidem cruzar as fronteiras nacionais para buscar segurança em outros países, sendo internacionalmente reconhecidos como “refugiados” e passando a ter acesso à assistência dos países.
Eles são assim reconhecidos por ser extremamente perigoso retornar a seus países de origem e, portanto, precisam de refúgio em outro lugar. Essas são pessoas às quais a recusa de refúgio pode ter consequências potencialmente fatais para suas vidas.
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De acordo com a Acnur, não há definição internacional para tratar da palavra ‘imigrante’. Geralmente, as organizações no mundo generalizam o termo para abarcar imigrantes e refugiados.
De qualquer forma, a “imigração” pode ser entendida como um processo voluntário, por exemplo, alguém que cruza uma fronteira em busca de melhores oportunidades econômicas, diferente dos refugiados, que não podem retornar às suas casas por questões de segurança.
A organização ainda ressalta que a confusão entre os termos pode tirar a atenção da proteção legal específica que os refugiados necessitam, como proteção contra a repressão e contra ser penalizado por cruzar fronteiras para buscar segurança sem autorização.
“Misturar os conceitos de “refugiados” e “migrantes” pode enfraquecer o apoio a refugiados e ao refúgio institucionalizado em um momento em que mais refugiados precisam de tal proteção”, afirma a instituição em trecho do site.
* Nome alterado a pedido do entrevistado por receio de represália.
** A pedido dos imigrantes e por medidas de proteção contra a Covid-19, a reportagem não fotografou os entrevistados. As imagens que ilustram a reportagem foram tiradas nas ruas do bairro pelo autor do texto.
Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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