Gabrielle Guido/Agência Mural
Por Cleber Arruda | 26.11.2021
Reportagem: Brenda Gomes, Cleber Arruda, Gabrielle Guido, Laís Lopes e Lucas Barbosa
Edição: Cleber Arruda
Publicado em 26.11.2021 | 19:40 | Alterado em 29.11.2021| 22:49
Transformando adversidades e preconceitos em laboratório, humoristas pretos de Salvador dão outro significado para o "humor negro" e fazem sucesso nas quebradas soteropolitanas
Tempo de leitura: 9 min(s)Com resiliência e criatividade, jovens comediantes negros das periferias baianas transformam o cotidiano de adversidades em laboratório para seus trabalhos, satirizam pautas sociais e caem nas graças do público.
Manu Magnata, nome artístico de Emanuel Santos de Jesus, 20, mora no Complexo do Nordeste de Amaralina e busca na vizinhança referências para seus personagens. “Me inspiro nas pessoas do meu bairro, nas mulheres que vendem rifas, nas vendedoras de frutas. Fico observando o comportamento delas e vendo o que posso acrescentar em meu trabalho”, conta.
Nas ruas da comunidade nasceu também uma de suas personagens, a repórter Thiffane Fox Kardashian, que aborda os moradores com entrevistas inusitadas, carregadas de pegadinhas, para o quadro humorístico “E aí população?”, do portal Complexo do Nordeste.
“Comecei a assistir reportagens da TV para ver como os repórteres faziam e tentar reproduzir. Na primeira gravação já decidimos o nome do quadro que também se tornou um bordão de Thiffane, alguém totalmente diferente do Manu. Ela é avulsa, gaiata, faz coisas que não tenho coragem de fazer”, diz o humorista.
Também moradora do Nordeste de Amaralina, a atriz Bárbara Bela, 32, conta que as mulheres das periferias são inspiração na construção da sua personagem Keylane, da websérie “Na rédea curta”, criada pelos comediantes Thiago Almasy e Sulivã Bispo.
“Keylane é a menina chatinha que a gente vê em nossas periferias, bem metidinha, que batalhou muito para conseguir o que tem, que é guerreira e não come ‘reggae’ de ninguém. Todo mundo conhece alguém assim”, diz a atriz.
Bárbara conta que o humor sempre esteve em sua trajetória e que atualmente ele cumpre um papel importante na sociedade atual. “A maioria dos meus trabalhos foram feitos a partir da comédia. Desde a faculdade, a gente vai sentindo inclinação para uma área específica e a minha sempre foi o riso. Eu acho que o humor tem um papel fundamental em tempos como este que estamos vivendo, de muitas perdas e com tantas desigualdades. E acho que o humor salva”, diz.
Sucesso da vez nas redes sociais após viralizar com mensagens de bom dia motivacionais o bordão “receba esse shalon”, o dançarino Enderson Cobra, 25, de Camaçari, região metropolitana de Salvador, comemora o impacto do riso na vida dos seus seguidores. Shalon ou shalom tem origem hebraica e significa paz.
“Recebo mensagens todos os dias e fico até emocionado em falar. Nunca vou esquecer de um médico que fez questão de me ligar e agradecer porque sua paciente havia passado por uma cirurgia, estava com depressão, e se sentia melhor assistindo meus vídeos”, conta.
Enderson grava os vídeos com os filhos adotivos Kauã e Kaick Figueiredo, de 13 anos, os “Gêmeos Fexação”, que completam suas frases em coro e repetem bordões.
“Percebi que a galera acorda querendo receber o shalon, que é uma palavra positiva, com energia lá em cima. Ouvir que ela é uma pessoa maravilhosa”
“E quando isso surgiu eu estava dizendo aquilo para mim. Estava em um dia horrível, e acho que nesse dia o Brasil todo estava precisando ouvir essa mensagem”, diz Enderson.
Enderson conta que estava frustrado com uma viagem que havia feita a São Paulo em busca de oportunidades profissionais. Voltou após sonhar viajando para Bahia para encontrar os gêmeos e, agora, o dançarino, que prefere ser definido como artista, realiza o sonho da infância de ser famoso e quer mostrar o potencial artístico de Camaçari para o mundo.
“Aqui é uma cidade muito humilde, mas é também a cidade das artes. É cheio de artistas escondidos. Foi aqui que me descobri e foi através da arte daqui que aceitei quem eu sou. Preciso levar o nome de Camaçari para fora. A arte aqui é rica, mas infelizmente tenho amigos que já desistiram pela falta de oportunidades”, diz.
A comédia também transformou a vida do humorista Jhordan Matheus, 27. Com mais de 302 mil seguidores no Instagram, superando a marca de 505 mil inscritos em seu canal no Youtube e uma agenda de shows de stand-up movimentada, Jhordan retrata em suas piadas cenas do cotidiano em seu bairro Engenho Velho de Brotas, na capital baiana. Como Enderson também buscou oportunidades fora da Bahia e não esquece desse momento da sua carreira.
“Quando saí de Salvador e fui para São Paulo, tive que morar em um porão com mais quatro comediantes. A gente não tinha dinheiro para comer, para transporte, ou para qualquer outra coisa. Então fomos guerreando para tentar conquistar nosso espaço”.
Agora, celebra os resultados dessa busca. “Hoje, graças à comédia, consigo realizar meus sonhos que é viver da arte e ajudar a minha família. A comédia hoje consegue me proporcionar coisas que eu jamais pensei em um dia ter.”
Para Jhordan, um dos grandes triunfos no seu trabalho é a identificação criada com o público em seus shows.
“Eu percebo que a galera favelada, preta, está muito presente nos shows. Dá pra ver que é muito uma galera que se identifica não só pelas piadas que eu conto, mas de onde eu vim, com a minha história, com que eu prego e falo, então é sempre um público que eu olho e me vejo. Pessoas faveladas e pretas como eu”, diz.
As comediantes apontam um questionamento importante sobre o papel das mulheres negras no humor. Para Bárbara Bela, as artistas estão inseridas em um contexto misógino.
“Infelizmente, vivemos em um país extremamente racista, machista e misógino. Onde a mulher negra é a última do patamar da pirâmide. Então, no humor, assim como em qualquer outro espaço, isso se reflete. Eu tenho vários sonhos, mas um deles é ver muitas mulheres fazendo piada, muitas artistas negras fazendo humor”, diz Bárbara.
A humorista Brida de Aragão, 22, do bairro de Cabula, busca em suas apresentações de stand-up comedy identificação feminina na plateia e mudar até mesmo as piadas.
“Quando estou no palco quero que as mulheres se identifiquem, porque por ser um lugar majoritariamente masculino, as piadas na maioria das vezes, taxam as mulheres como loucas, ou falam que a pessoa está cansada do casamento com uma mulher. Quero que elas vejam que tem alguém falando algo engraçado que elas gostem de ouvir sem serem ofendidas”, diz Brida, que em seu repertório mistura assuntos leves à temas atuais e sérios como a ausência de pessoas na vacinação contra a Covid-19.
Para a humorista Bruna Carvalho, 29, mais conhecida como Cerejaaaaa, do bairro da Federação, o espaço no mercado de trabalho também precisa ser repensado para as mulheres.
“Vejo gente travestido de mulher, e penso porque não contratar uma mulher para aquele papel? Percebo isso no mercado e acho que ainda está longe de acabar, por isso estou aqui para quebrar esse padrão e representá-las”, diz.
A atriz Bárbara reflete sobre a falta de oportunidades no mercado. “Em Salvador, apesar de borbulhar de artistas, é muito difícil para quem quer se manter com arte. Não temos muitas grandes produções e as que temos já estão com cartas marcadas, então é complicado mesmo, é muita gente para pouco trabalho. Talvez com essa maior utilização das redes sociais as coisas melhorem.”
Cerejaaaaa, que bombou nas redes sociais com um áudio sobre a Avenida 7 de Setembro, tem conseguido viralizar vídeos na internet e entrou no radar das marcas para realizar campanhas publicitárias. Agora, a comediante diz que consegue se manter com o trabalho, comemora a compra de um celular novo à vista e diz que quer alçar novos voos na carreira.
“Gosto muito de fazer humor no Instagram, mas o meu intuito mesmo é ir pra televisão. Quero ser atriz, inclusive já vou iniciar o meu curso de teatro. Eu vou trabalhar na TV, ainda vou ser atriz e todo mundo ainda vai me ver fazendo novela, programa humorístico. É essa a intenção.”
O humor também é utilizado para abordar pautas sérias como homofobia, intolerância religiosa, machismo e racismo. Ou mesmo rebater ataques sofridos por esses artistas no seu dia a dia.
Enderson Cobra conta que após a viralização do vídeo nas redes sociais sofreu com a repercussão e se sentiu mal com diversas ofensas enviadas nos comentários, principalmente homofóbicos. “A depressão me pegou no quarto que ninguém me tirava, porque as pessoas atacavam muito e era eu leigo, novo na internet, não sabia como me defender. Fui atrás de ajuda, de psicólogo, advogado, delegado”.
Enderson diz que através desse suporte entendeu seu papel e como agir diante dos haters, como são conhecidas as pessoas que disseminam ódio nas redes sociais. “Agora eu sei qual é o meu lugar e a minha intenção aqui na terra e também a importância de estar na mídia. Eu defendo a bandeira que mais mata no mundo e eu trabalho com crianças viadas e isso é um murro no estômago da sociedade.”
E exemplifica: “A pergunta de todos dias é: ‘o que a mãe acha disso?’. E eu já tenho uma resposta automática: ‘ela acha que eles estão felizes’. A sociedade não está acostumada a ver crianças como elas são. E tome conteúdo”.
Por outro lado, o artista diz ter recebido carinho e apoio da comunidade LGBTQIA+. “Depois eu tive noção de como a nossa comunidade é grande e estava conosco para o que viesse”, diz.
“Percebi a importância dos meninos estarem ali, porque a gente recebe mensagens de crianças que não são assumidas e queriam ter uma família como a gente, a nossa amizade, ou de adultos que queriam ter tido essa infância”
Assim como Enderson, o comediante Leonardo Santos, 23, ou Léo Santos, como se apresenta, também faz do humor uma ferramenta para enfrentar preconceitos. Com a personagem “Mãe Rita”, ele leva ao debate a questão da intolerância religiosa e a valorização dos costumes das religiões de matriz africana.
“Mãe Rita passa mensagem de inclusão, passa mensagem de respeito religioso. Ela é um personagem que denuncia violências, mas que também ironiza as coisas que acontecem dentro das casas de candomblé, e com simpatizantes da religião”, diz Léo sobre a personagem.
O humorista fala dos preconceitos e desafios profissionais que já encarou. “A principal dificuldade encontrada por mim é o racismo. Percebo que às vezes perco a oportunidade de realizar trabalhos porque eu represento um personagem que não agrada a todos, de uma religião que é comumente, de forma errônea, mal vista pela sociedade.”
Na internet, Léo também foi alvo de comentários odiosos que atacavam a sua fé e conta como foi importante o suporte familiar para seguir adiante.
“Já recebi comentários muito maldosos que me desanimaram bastante. Mas com o apoio da minha mãe, principalmente eu vou seguindo. Ela sempre me emprestou as roupas dela, sempre me deu esse suporte emocional e me encorajou. Com o passar do tempo eu vou sentindo um alívio de ver como as coisas estão dando certo. Vendo que o incentivo dela e das minhas tias não são em vão.”
E apesar dos desafios, o jovem do bairro da Federação comemora os voos alçados pelo trabalho. “Participei de festivais e conheci atores, cantores e artistas que eu só via pela televisão. Conquistei muitas e muitas coisas e consegui acessar locais que eu não imaginava. Isso para mim é mais que um sonho. Um jovem negro, periférico, criado só pela mãe”, comemora.
Jhordan Matheus comenta também sobre os desafios de ser um humorista negro e rastáfari. “É você chegar em um espaço e saber que vai incomodar, são piadas e vivências totalmente diferentes. A comédia até muito pouco tempo era para quem tinha condições de fazer, para quem podia abdicar da sua vida para poder fazer comédia como um hobby”.
E reflete sobre as mudanças. “Hoje, como profissão, a comédia acaba trazendo cada vez mais a própria realidade para o palco, para as piadas e isso consequentemente traz um pensamento mais apurado, para assim as pessoas entenderem a piada, se colocarem no lugar do outro e perceber que o que é piada e o que ofende.”
O historiador Alan Felix, 34, observa como o racismo fez parte dessas transições e explica que o termo “humor negro”, surgido na idade média, está conectado a ele.
“Aqui no Brasil o humor vai ser utilizado como uma mensagem cultural, e isso acaba dando um tom de graça à reprodução do racismo. As pessoas acham graça quando chamam negros de macacos, por exemplo, e nessas ‘piadas’ existe um processo de animalização e inferioridade dos negros, que causa uma normalização do racismo.’’
Para a comediante Brida de Aragão, é necessário observar a conotação que o termo humor negro carrega. “Acho problemático o uso da palavra negra porque vai na mesma ideia da palavra negro para trazer uma conotação ruim, para as coisas como ‘magia negra’, ‘mercado negro’ etc. A gente sabe que é uma estratégia linguística para trazer uma conotação que não é adequada para palavra, então, é bom começar a substituir ‘humor negro’ por ‘humor ácido’”.
O historiador ressalta que a participação dos negros na comédia é fundamental no combater ao preconceito. ’Os humoristas negros vem produzindo outro tipo de humor, que vem criticando e rebatendo esse tipo de comédia que ajuda a perpetuar a inferiorização do corpo negro.‘’ diz.
É o caso do ator Hamilton de Oliveira, 26, morador do bairro de São Marcos, comediante desde 2016 e membro do coletivo de humor Preto Básico, que fala da importância da representatividade na cena soteropolitana.
“O grupo surgiu a partir da necessidade de criar uma cena de humor consciente. A minha importância nesse coletivo é reforçar o negro em local de destaque e onde mais ele merecer estar, sem reforçar esse locais estereotipados e pejorativos causando identificação em quem assiste”, comenta.
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Cofundador, correspondente da Brasilândia desde 2010 e editor em projetos especiais. É jornalista do Valor Econômico e voluntário do projeto Animais da Aldeia. Canceriano, gosta de cachorros e de viajar por aí.
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