Por: Paulo Talarico
Reportagem: Ana Beatriz Felicio e Lucas Veloso | Fotos: Léu Britto | Artes: Magno Borges
Vídeo: Rômulo Cabrera e Renan Omura
Edição: Paulo Talarico, Tamiris Gomes e Vagner Alencar
Publicado em 20.04.2021 | 15:44 | Alterado em 06.07.2022| 14:39
Com crise e o aumento nos preços, moradores das periferias não conseguem comprar gás de cozinha e preparam alimentos no fogo a lenha em várias favelas da Grande São Paulo. Nesta reportagem especial em texto, vídeo e quadrinhos, ouvimos relatos sobre a situação e de como a população tem feito para sobreviver em meio a alta do desemprego em um país que 27 milhões vivem abaixo da linha da pobreza
Tempo de leitura: 10 min(s)No chão de terra próximo à sua casa, Tânia Pereira Rocha, 49, ajeita dois blocos de tijolo. Ela coloca uma grade entre eles e separa lenha, que aquece a parte inferior do fogão improvisado. A adaptação foi o único jeito encontrado por ela para cozinhar para a família.
Na panela de metal, prepara arroz e feijão, recebido de doações feitas para a comunidade Porto de Areia, em Carapicuíba, cidade da região oeste da Grande São Paulo.
Assim como Tânia, afetados pelo agravamento da crise econômica e da falta de apoio financeiro, moradores das periferias estão substituindo o gás de cozinha pela lenha e enfrentando situações de insegurança alimentar.
De acordo com dados da FGV Social, o número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil triplicou durante a pandemia de Covid-19, chegando a 27 milhões de brasileiros, 12,8% da população do país.
A Agência Mural conversou com algumas delas, que carregam os rostos e histórias atrás dos tristes dados causados pela crise econômica gerada pela pandemia.
A favela Porto de Areia está situada entre os trilhos do trem e uma lagoa poluída. Ela abriga cerca de mil famílias, de acordo com a associação de moradores. No local, havia um lixão a céu aberto, que era o maior da região metropolitana.
Tânia vive ali há 30 anos. Atualmente divide a casa com três filhos, de 25, 20 e 17 anos, e netas, de 9 e 8 anos. Além dela, demitida do restaurante onde trabalhava como ajudante de cozinha em dezembro, os filhos também estão desempregados.
Além dos bicos pontuais, a única forma de conseguir comer são as doações feitas à comunidade. Entretanto, comprar o botijão de gás de cozinha, que segundo ela custa em média R$ 90, nem sempre é possível.
Desde que perdeu o emprego, a família vive uma situação de insegurança alimentar (quando falta comida no dia a dia – no caso mais grave – ou há incerteza sobre a possibilidade de se alimentar no futuro).
Tânia Pereira Rocha no lugar onde costuma cozinhar a lenha na favela Porto de Areia. Ela vive na comunidade há 30 anos @Léu Britto/Agência Mural
Muitos moradores da comunidade sobrevivem apenas de doações de alimentos. Mais de 125 milhões de brasileiros sofreram insegurança alimentar durante a pandemia @Léu Britto/Agência Mural
Todos na casa da Tânia estão desempregados. Atualmente ela divide a casa com três filhos, de 25, 20 e 17 anos, e netas, de 9 e 8 anos @Léu Britto/Agência Mural
De acordo com a associação de moradores, Favela Porto de Areia abriga cerca de mil famílias @Léu Britto/Agência Mural
Comunidade surgiu a partir de um antigo lixão a céu aberto @Léu Britto/Agência Mural
Uma pesquisa realizada em fevereiro de 2021 pelo DataFavela, Instituto Locomotiva e a CUFA (Central Única das Favelas), 58% dos moradores de favelas pediram e receberam o auxílio emergencial @Léu Britto/Agência Mural
De acordo com a Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar, adotada pelo IBGE (Instituto Brasileira de Geografia e Estatística), a insegurança pode ser leve, moderada ou grave.
No último caso, o mais severo, há a redução de alimentos entre as crianças e ou a ruptura nos padrões de alimentação, resultando na fome.
A pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil” revelou que, assim como a família de Tânia, mais de 125 milhões de brasileiros (59,3% da população) sofreram insegurança alimentar durante a pandemia.
O levantamento foi feito pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, sediado no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha.
A cerca de 30 km da casa de Tânia, no Jardim Damasceno, distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo, a situação é parecida. Também em chão de terra, Rose da Silva, 48, usa uma antiga lata de tinta como suporte improvisado para cozinhar a lenha.
A costureira, desempregada há anos, tem quatro filhos entre 2 e 12 anos. Nos últimos meses, está impossibilitada de comprar gás, o que a fez improvisar um fogão para a comida das crianças. “Não está dando para comprar o botijão. Tomo remédio, minha cabeça não está boa também”, relata.
Para cozinhar sem gás, Rose diz demorar de 4 a 5 horas, a depender do alimento. Em dias de chuva, o cenário é pior, pois o fogão improvisado leva mais minutos para esquentar. “Aí peço ajuda para as pessoas [para conseguir alimentos] quando não consigo fazer fogo.”
O lugar onde dorme com os filhos não é sua casa, já que mora de favor. Para sobreviver, precisa contar com a ajuda dos vizinhos, seja com dinheiro para comprar pão, doação de alimentos ou outras necessidades básicas do dia a dia.
Sem previsão de uma melhora na qualidade de vida, diz que os serviços públicos não são acessíveis. “Não acesso a tecnologia. É difícil entrar nas coisas da prefeitura.”
Na mesma região, Maria Delfina, 34, juntou alguns blocos, madeira, álcool e fósforo. Dentro de um quarto, onde mora de favor, faz a comida para si e para os filhos. No dia em que a reportagem da Agência Mural falou com ela, estava esquentando água para fazer mingau de fubá.
Sem o comprometimento dos pais das crianças, todos os dias, ela se preocupa com o que vai oferecer aos filhos e como vai preparar as refeições. Mãe de seis filhos, entre 1 e 14 anos, Maria está desempregada e também diz não contar com a ajuda do poder público para acessar coisas básicas. “Não tenho gás”, afirma.
Depois de juntar muita madeira, o analista de sistemas Fernando Godinho, 39, levantou a casa, que, na verdade, é um barraco improvisado em meio a uma ocupação de moradia em Jundiapeba, em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.
No terreno de chão de barro, ele vive com três filhos no espaço improvisado. O lugar é conhecido como Baixo das Torres.
Para dar conta das necessidades básicas, nos últimos meses, trabalhou em confecções de artesanato, mas recentemente perdeu esta renda.
O dinheiro que tinha guardado foi usado para comprar medicamentos contra a asma, após sofrer algumas crises. “Ia usar o valor para comprar o gás futuramente, mas foi necessário que eu usasse. E, com isso, infelizmente, meu botijão acabou. Não tive outra opção a não ser cozinhar a lenha, e já estou nisso há uns 15 dias.”
Além da precariedade para fazer comida, a fumaça gerada pela queima das madeiras piora a situação de saúde dele, o que torna os remédios essenciais. “O contato é direto, e prejudica muito a saúde. De noite dá a crise.”
Para conseguir fazer o fogo, o analista busca madeiras descartadas em lixos e em terrenos baldios da região. Geralmente, começa a cozinhar pela manhã e depois mantêm a brasa acesa para as demais refeições da família. “A rotina é cansativa”, diz.
Beneficiado pelo Bolsa Família, Fernando afirma ter passado por “perrengues” desde o início da pandemia, como a própria falta de comida. Ele não esconde que só consegue alimentar os filhos graças às doações.
“É pelas entidades e os movimentos sociais, que vêm fazer trabalhos na comunidade, que consigo comer”, comenta.
Apesar da situação, Fernando conhece pessoas em situação de mais vulnerabilidade que a dele. Ele cita moradores necessitados de mais alimentos, crianças sem fraldas ou leite e até pessoas com necessidades psicológicas e jurídicas. “A gente tem a ciência de que tudo é fruto de arrecadação. Ganhamos dos mais ricos para distribuir para os outros mais pobres, entendeu?”
Perguntado sobre o que deveria ser feito para mudar a situação, diz que “ter muita fé em Deus” é uma delas e que as pessoas tenham consciência da situação social do país e ajudem os mais pobres.
O uso diário da lenha pode causar doenças ou agravar a situação de quem já vive problemas respiratórios como Fernando.
Um dos exemplos é a DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica), sigla usada para descrever doenças pulmonares progressivas, como enfisema, bronquite crônica e asma refratária.
Há dez anos, a OMS (Organização Mundial da Saúde) disse que a queima de madeira e carvão nas casas matava cerca de 2 milhões por ano, naquele período, sendo que a situação era mais comum nos países menos desenvolvidos (na América Latina e África).
“Diariamente, e durante horas, mulheres e crianças respiram uma quantidade de fumaça equivalente a fumar dois maços de cigarro por dia”, disse a OMS na época.
A entidade apontou a fumaça produzida por essas formas de cozimento primitivas como a causadora de doenças em casas sem ventilação. As maiores vítimas são as pessoas que ficam mais tempo dentro de casa, realidade mais comum com a pandemia.
Este ano, o valor do GLP (gás liquefeito de petróleo), conhecido como gás de cozinha, já foi reajustado quatro vezes. A última mudança anunciada pela Petrobras, válida a partir de 2 de abril, elevou o custo para as distribuidoras em 5%.
Entretanto, além dos valores praticados nas refinarias da empresa estatal, outros tributos federais e estaduais, somados aos custos das distribuidoras também pesam no valor final do gás.
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Porém, não é apenas o aumento do botijão que tem levado as pessoas a recorrer à lenha. Em fevereiro de 2021, o IPCA acumulado dos últimos 12 meses, principal índice econômico que mede a inflação no Brasil, foi de 5,20%.
“Os mais pobres estão mais suscetíveis à alta dos preços, em especial de alimentos, pois precisam gastar a maior parte de sua renda com alimentação”, aponta a economista Regiane Vieira Wochler, mestra em economia política pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo.
“As mulheres pretas/pardas com filhos perderam mais espaço no mercado de trabalho, ocupam cargos de menor remuneração e são a maioria em lares como chefes de família solo, portanto, são as mais expostas à severidade das condições impostas pela pandemia.”
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa média de desemprego no país, no ano passado, foi de 13,5%, a maior da série iniciada em 2012.
Os números da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) mostram que o desemprego ficou em 14,2% no trimestre encerrado em janeiro, a maior taxa já registrada para o período – são 14,3 milhões de brasileiros sem trabalho.
Soma-se a esse cenário a demora para aprovação do novo auxílio emergencial que, além de deixar cerca de 22,6 milhões de pessoas de fora da nova rodada, agora tem valores até 70% mais baixos.
De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em fevereiro de 2021 o valor da cesta básica no estado de São Paulo era de R$ 639,47.
“As famílias terão de gastar toda sua renda com a alimentação, e o custo do gás torna-se proibitivo. Cenas como essas ferem o direito à cidadania plena”, analisa Regiane.
Uma pesquisa realizada em fevereiro de 2021 pelo DataFavela, Instituto Locomotiva e a CUFA (Central Única das Favelas), mostra que 58% dos moradores de favelas pediram e receberam o auxílio emergencial. Com o fim do benefício, 67% precisaram cortar despesas básicas.
A pesquisa também mostrou que 9 em cada 10 moradores receberam alguma doação durante a pandemia. Além disso, oito em cada 10 famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene, limpeza, e pagar as contas mais básicas caso não tivessem recebido as doações.
Para a economista, além desses fatores, a demora na vacinação em massa da população também atrasa a retomada sustentável das atividades econômicas.
“Acredito que o primeiro semestre de 2021 será de recessão econômica. Diante do total desamparo aos mais pobres, fatalmente a pobreza e desigualdades sociais e raciais crescerão. No Brasil a pobreza e a fome têm cor, pois 74% dos que estão em extrema pobreza são pretos/pardos segundo IBGE.”
Apesar das situações relatadas nesta reportagem, a solidariedade nas periferias é um aspecto que não pode ser ignorado. Coletivos de cultura, ativistas, professores e outros personagens se uniram, desde o começo da pandemia, em mobilizações na busca de comida e recursos mínimos à população, como álcool em gel e máscaras.
Um exemplo foi contado em maio passado. Para combater a fome e acolher mulheres no Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo, as integrantes da Escola Feminista Aby Ayala criaram uma rede de apoio.
Em uma “vaquinha virtual”, o grupo arrecadou cerca de R$ 15 mil, usado para apoiar cem mulheres chefes de família, por no mínimo três meses, com doação de cestas básicas, alimentos orgânicos, água, produtos de limpeza, álcool 70% e máscaras.
Na zona norte, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), em conjunto com o líder comunitário Quintino José Viana, 74, responsável pelo movimento Ousadia Popular, criaram a Cozinha Solidária na Brasilândia.
De acordo com o líder comunitário, a distribuição das refeições neste momento da pandemia é essencial, já que muitas famílias não têm o que oferecer aos filhos. Pelo WhatsApp, diariamente, Quintino mobiliza doações aos mais pobres da região.
Em Paraisópolis, segunda maior favela da capital paulista, na manhã da última terça-feira (13), foram entregues cerca de 2.000 cestas básicas, arrecadadas pela campanha #PANELASVAZIAS, promovida pelo G10 Favelas.
A ação faz parte da campanha nacional para levar comida a mais de 300 comunidades, em 14 estados. “Durante os últimos meses de pandemia, o G10 Favelas promoveu 12 iniciativas que viabilizaram a doação de mais de 1 milhão de cestas básicas e máscaras, além da distribuição de mais de 1,5 milhão de marmitas”, diz Gilson Rodrigues, 36.
O líder da comunidade também cita a contratação de ambulâncias e a criação de uma casa de acolhimento na comunidade. “Essas iniciativas têm se espalhado no país, colocando os moradores como agentes da sua própria transformação.”
Comunidade Porto de Areia
União dos moradores do Porto de Areia de Carapicuíba – Líder comunitária Cleide Farias (11) 9-6725-9338. (Aceitam todo tipo de doação, como alimentos e materiais de construção)
Ocupação Baixo das Torres
O Coletivo Inadequados é um projeto de impacto social no distrito de Jundiapeba, em Mogi das Cruzes. Eles criaram uma vaquinha virtual.
Nós por Nós no novo normal – A fome não deve ser natural!
Criada pela Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias, a campanha busca arrecadar alimentos para ajudar mais de 12 mil famílias moradoras das periferias de São Paulo.
Movimento Ousadia Popular
Na Brasilândia, zona norte da capital, o movimento atende centenas de pessoas e busca auxílio neste momento. As doações podem ser alinhadas pelo Facebook do projeto.
Panelas Vazias
Promovida pelo G10 Favelas, a ação faz parte da campanha nacional que pretende levar comida para mais de 300 comunidades. É possível doar pelo PIX (12.772.787/0001-99) e de diversas outras maneiras por meio do site do G10 Favelas.
Panela Cheia
Movimento Panela Cheia, que conta com apoio do UniãoSP e cooperação da Unesco, busca arrecadar 2 milhões de cestas básicas. As doações podem ser feitas por meio dosite do projeto.
Projeto Pró Bem
Em Mogi das Cruzes, a organização sem fins lucrativos arrecada alimentos para distribuição às famílias em situação de vulnerabilidade da cidade. As doações podem ser realizadas no endereço: Rua Victorio Partênio, nº 60, no bairro Vila Partenio, ou pelos telefones (11) 9 5791-7323 / (11) 9 5824-7312.
Outras indicações
O portal Periferia em Movimento, junto com o Nós mulheres da periferia, organizou uma relação de coletivos e movimentos sociais nas periferias que estão recolhendo doações neste período. As informações podem ser acessadas aqui.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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