Magno Borges/ Agência Mural
Por: Jacqueline Maria da Silva | Katia Flora
Edição: Sarah Fernandes
Publicado em 18.01.2024 | 16:17 | Alterado em 25.04.2024| 16:03
Oito em cada 10 pessoas entre 18 e 34 anos já consumiram cigarros eletrônicos ao menos uma vez
Tempo de leitura: 8 min(s)É sexta-feira à noite e faz calor. Adolescentes e jovens dividem espaço na calçada, em conversas animadas, embaladas por músicas nas caixinhas de som. Sobre a mesa, além de copos e petiscos, estão também os chamados “vapes”, um tipo de cigarro eletrônico saborizado que geralmente é consumido entre amigos, de forma compartilhada.
Halls de melancia, red blend, grape ice e black note são alguns dos sabores dos chamados “juices” – líquidos que abastecem os vapes e que ganham um ar “descolado” e refrescante, sem fumaça ou cheiro. Um simples puxe é suficiente para passar o vape para o amigo experimentar ou para receber dele um dispositivo com um novo sabor.
Embora esse cenário tenha se tornado comum nas periferias da Grande São Paulo, ele revela um hábito crescente e preocupante entre adolescentes e jovens: o consumo dos chamados DEFs (Dispositivos Eletrônicos para Fumar), como os cigarros eletrônicos, vapes e pods. Apesar dos danos à saúde, conquistam cada vez mais usuários.
DEFs são aparelhos de diferentes formatos que funcionam a bateria e contêm aditivos com sabores, substâncias tóxicas e nicotina. Dentro dessa classificação estão o narguilé e os cigarros eletrônicos, que incluem dispositivos de mão, como pods e vapes.
“Muitas vezes tenho tosse e sinto a garganta, que fica doendo. Eu sinto mais fadiga”, relata lojista e fumante Nicoly Silva, 19, de Osasco, na região metropolitana. “Já aconteceu de ficar tonta e com falta de ar. Não conseguia levar minha filha de dois anos no colo e meus dentes ficaram mais amarelados”, comenta a frentista e também fumante Beatriz Duarte Cardoso da Silva, 24, da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo.
A aparência inofensiva, a variedade de sabores e a popularização desses dispositivos, usados livremente em baladas, tabacarias e nos intervalos de aulas, dificultam uma constatação já comprovada: muitos jovens desenvolveram dependência dos cigarros eletrônicos, e a maioria só procura ajuda médica quando manifesta condições de saúde.
E a lista é longa: infarto, câncer e doenças respiratórias como pneumonia, asmas, enfisema e a chamada Evali (lesão aguda pulmonar por eletrônicos, em português) – uma doença especificamente associada aos cigarros eletrônicos. A Evali causa fibrose no pulmão e um aspecto de embranquecimento nos exames de imagem, semelhante ao provocado pela Covid-19, o que, por vezes, dificulta a origem do problema.
Os primeiros casos de Evali associados aos cigarros eletrônicos foram registrados nos Estados Unidos, em abril de 2019, afetando jovens na faixa dos 20 anos. No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) notificou sete casos até metade do ano passado, embora essa estatística possa não refletir totalmente a realidade, uma vez que a Evali não é uma doença de notificação obrigatória.
Devido aos riscos à saúde, em 2009 foi aprovada a Resolução 46 da Anvisa, que proíbe a comercialização, importação e propaganda de DEFs, assim como seu uso em locais fechados, privados ou públicos. Importante dizer que o uso não é considerado crime, mas sim a venda, sujeita a pena de reclusão de um a cinco anos, além de multa.
Um, dois, três puxes foram suficientes para substituir o narguilé pelo pod. “Experimentei, gostei e achei mais prático de fumar do que o narguilé, que tem todo o processo de acender carvão”, descreve o fiscal de loja Wellington Arruda Lima, 29, do Aricanduva, zona leste de São Paulo.
Há dois anos, o pod se tornou parte da rotina do jovem, em um uso que ele define como “recreativo”: sempre aos finais de semana, em reuniões com os amigos. Um consumo menor que o maço e meio de cigarros convencionais que fuma por dia desde os 19 anos — e não pretende parar.
“Tem pessoas que precisam de incentivo para parar, mas não é o meu caso”, admite. “Existem os dois lados da moeda: tem a vontade de fumar, mas a nicotina é viciante. É uma briga interna entre você e você”.
Ao contrário, o influenciador digital Caio Silva, 23, de Guarulhos, começou a usar vape na tentativa de abandonar o cigarro tradicional, com a intenção de preservar a saúde e o bolso.
“Você encontra vapes desde R$ 20 até R$150. Quando você pega um eletrônico que tem mais de mil puxos, sai mais barato do que você ficar comprando cigarro”, diz.
Caio chegou a ser repreendido em festas por fumar cigarro convencional, mas nunca pelo uso do eletrônico. Ele sente uma maior aceitação social ao usar o vape, o que atribui ao fato de o consumo desses dispositivos geralmente ocorrer em grupos, de forma compartilhada, semelhante ao narguilé.
Puxos, puxes ou puff se referem ao ato de tragar o cigarro eletrônico e também à quantidade de vaporadas permitidas pelo aparelho na hora da compra: um aparelho com mil puxos permite mil tragadas.
Outras características do produto, como vapor com aroma, a ausência de fumaça e a sensação de falso relaxamento que provoca, contribuem para a crescente popularidade dos cigarros eletrônicos nas quebradas.
“Os aromatizantes químicos vaporizados são extremamente importantes na sedução do tabagismo, porque agregam o prazer do aroma e do cheiro, e fornecem uma memória afetiva”, diz o médico pneumologista Ciro Kirchenchtejn, membro do Fórum de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
Foram justamente essas características que atraíram a lojista Nicoly, de Osasco, para o uso do pod. Quando experimentou pela primeira vez, há dois anos, em um grupo de amigos, o sabor e a facilidade de usar e transportar tornaram o consumo um hábito diário, especialmente após almoço e à noite. “O pod tem cheiro de fruta, gosto doce, você consegue dar um puf até no banheiro”.
Foram justamente as facilidades no consumo dos DEFs que acenderam um sinal vermelho para a frentista Beatriz: o medo do hábito se tornar um vício fez com que ela interrompesse recentemente o uso, após três anos de consumo, que teve início quando ganhou um pod de aniversário do irmão.
Desempregada na época, ela enxergou a possibilidade de reduzir os gastos com cigarro convencional, mas percebeu que o uso constante continuava pesando no bolso — e na saúde.
“Eu fui pegando um vício. Comprava para revender e ganhava ou pegava um de sabor diferente para provar, porque muita gente me perguntava qual o mais suave, intenso, gostoso e eu sabia informar”. Depois de ser informada da proibição da Anvisa sobre as vendas, ela deixou de comercializar os dispositivos.
Em geral, quem tem mais de 24 anos iniciou o tabagismo com cigarros comuns e, depois, optou pelos eletrônicos. Por outro lado, os adolescentes são mais atraídos pelos pods e vapes, uma tendência nesta faixa etária.
“O pod trouxe muita gente pra essa vida [tabagismo]. Eu conheço muita gente de 13, 14, 15 anos que usam sem se preocupar em esconder dos pais, como o cigarro comum, que tem gosto ruim, cheiro que impregna. O uso dos vapes é muito menos perceptível. Hoje eu vou em lugares que é proibido usar cigarro, mas é aceito o pod, porque não há fogo, cinzas ou fumaças”, afirma Nicoly, hoje com 19 anos.
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar mostram que quase 23% dos escolares entre 13 e 17 anos já fumaram cigarro uma vez na vida, e quase 17% já haviam experimentado cigarro eletrônico.
“O tabagismo por si só já é uma doença considerada no CID, Classificação Internacional de Doenças, mas ela também é considerada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma doença pediátrica, porque os fumantes adultos de hoje começaram a fumar antes dos 19 anos”, declara Mariana Pinho, coordenadora do Projeto Tabaco da ACT Promoção da Saúde.
Ciclo vicioso
A nicotina atua nos neurotransmissores (células do sistema nervoso) provocando sensação de prazer imediato. No entanto, quando a pessoa cessa o uso, porém, sintomas de nervosismo, irritação, tristeza e falta de concentração podem retornar ainda mais intensos. Para se sentir bem, a pessoa precisa consumir o cigarro com maior frequência ou em maior quantidade.
Estudos comprovam que a dependência dos vapes, pods e cigarros eletrônicos é tão intensa quanto a dos cigarros convencionais. Isso ocorre porque esses dispositivos também possuem quantidades significativas de nicotina, que, além de causar dependência, acentuam os sintomas de estresse e ansiedade, motivando ainda mais o consumo, criando assim um ciclo vicioso.
“O pod eu consigo parar [se quiser], mas o cigarro não, pelo tempo de uso. Eu não penso em parar, pois acredito que uma doença, como um câncer por exemplo, é causado por vários fatores. Compenso o risco com atividade física e alimentação saudável”, declara Wellington.
Já Nicoly quer parar de usar pod, mas só pensar em ficar sem já sente ansiedade. “Ainda estou em um meio termo: quero parar e ainda tenho muita dificuldade. Você fuma deitada no seu quarto, no banheiro, em qualquer lugar. É justamente essa praticidade que vai te pegando, aos poucos, sem você perceber. Todos os dias é uma luta para diminuir o consumo”.
No caso dos adolescentes, os efeitos da dependência podem ser ainda mais graves. “A nicotina entra no organismo rapidamente e atua no sistema nervoso central, que neles ainda está em desenvolvimento. Isso pode alterar o funcionamento do cérebro, o aprendizado e causar dependência”, pontua Mariana, coordenadora da ACT.
Por isso ela reforça que é necessário tratar o tabagismo para além de uma decisão pessoal, mas como uma doença e que exige tratamento.
22,6% dos estudantes entre 13 e 17 anos já fumaram cigarro ao menos uma vez
11% experimentaram o cigarro comum pela primeira vez antes dos 14 anos
Nessa faixa etária, 26,9% já haviam experimentado narguilé no Brasil. Em São Paulo foram 45,9%, o quarto estado com mais incidência
Dos alunos entre 13 a 17 anos, 16,8% já haviam experimentado cigarro eletrônico. A maior parte (22,7%) entre 16 e 17 anos
80% dos jovens entre 18 e 34 anos já consumiram cigarros eletrônicos ao menos uma vez; na faixa dos 18 anos aos 24 anos, um em cada cinco jovens já fez uso do dispositivo
2,3% da população brasileira faz uso dos cigarros eletrônicos
A opinião dos entrevistados é unânime: o crescente uso de cigarros eletrônicos entre jovens das quebradas pode estar associado ao fácil acesso aos dispositivos em tabacarias; ao consumo como mecanismo de fuga contra o estresse diário; e às restritas alternativas de lazer dentro das periferias.
“O nosso divertimento na periferia é diferente, eu gosto muito mais de estar reunido com amigos fumando um cigarro e um pod do que em outro rolê”, aponta Wellington.
Esses, porém, não são os únicos fatores que influenciam o consumo. Segundo especialistas, existe uma ideia errônea de que o cigarro eletrônico seria uma alternativa para quem deseja largar o tabaco comum ou que seriam menos danosos à saúde, por não produzirem fumaça como o cigarro convencional, composta por monóxido de carbono.
“Essa ‘cultura’ dentro da periferia [uso de cigarros eletrônicos] se instaurou sem conscientização”, acredita o influenciador digital Caio, que avalia que informações sobre os malefícios dos dispositivos nem sempre estão acessíveis e não há alertas nas embalagens, como nos cigarros convencionais.
Pesquisas comprovam que os cigarros eletrônicos possuem maior teor de nicotina líquida que os convencionais, o que pode causar dependência com mais facilidade.
O pneumologista Ciro Kirchenchtejn exemplifica: uma pessoa que consome um maço de cigarros convencionais diariamente (20 unidades) inala cerca de 40mg de tabaco ao dia, já que cada unidade possui 2mg. O reservatório do cigarro eletrônico, por sua vez, possui 60mg de tabaco, o equivalente a 30 cigarros. Assim, um pod equivaleria a um maço e meio.
Para além do tabaco, o especialista reforça que o cigarro eletrônico contém muito mais substâncias cancerígenas que os convencionais, por conter uma bateria que possui metais pesados, diluidores de nicotina (glicerina e propilenoglicol) e os saborizantes, que quando vaporizados agridem os pulmões e aumentam o risco de doenças respiratórias.
Apesar dos malefícios, grandes empresas do setor se empenham em tentar legalizar o uso dos DEFs no Brasil. Atualmente, tramita no Senado o PL 5008/2023, da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que propõe a regulamentação de cigarro eletrônico no país. O texto prevê a liberação de produção, importação, exportação, comercialização, fiscalização e propaganda dos cigarros eletrônicos.
Para se tornar Lei, o PL deverá ainda ser aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados e ser sancionado pela Presidência da República. Contudo, ainda passa por análise na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado.
Na contramão dessas iniciativas, a OMS (Organização Mundial da Saúde) tem se posicionado contra a legalização desses dispositivos, atualizando constantemente seu relatório de Riscos e Impactos do Registro de DEFs no Brasil.
Com a pressão a favor da legalização, a Anvisa autorizou, no dia 1 de dezembro, a abertura de uma consulta pública para revisar a proibição do DEF no Brasil, ainda sem data para acontecer. Com esse mecanismo, o órgão busca contribuições da sociedade para formulação de políticas de regulação.
Quem quiser enviar sua contribuição, deve acessar e preencher o formulário do governo até 9 de fevereiro.
Em âmbito local, a ACT Promoção da Saúde implanta ações em defesa de políticas públicas de controle do tabagismo, álcool e alimentação saudável. “Fazemos campanhas buscando atrair os jovens para explicar os prejuízos dos cigarros eletrônicos, produzimos workshops e roda de conversa para conscientização”, diz Mariana, coordenadora da organização.
A busca precoce por ajuda na prevenção e tratamento do tabagismo são fundamentais para garantir saúde, qualidade de vida e autonomia dos jovens periféricos. O SUS (Sistema Único de Saúde) oferece diversas formas de apoio e tratamento. Encontre o posto de saúde de São Paulo mais próximo para tratamento do tabagismo.
Apesar de proibidos, cigarros eletrônicos são vendidos livrementes em centros comerciais @Léu Britto/ Agência Mural
Narguilé tem perdido espaço entre jovens devido à dificuldade no uso @Léu Britto/ Agência Mural
Anvisa lançou consulta pública para definir políticas de controle ao uso de DEFs @Léu Britto/ Agência Mural
Pesquisas comprovam que cigarros eletrônicos são tão viciantes quando os convencionais @Léu Britto/ Agência Mural
OMS considera tabagismo uma doença pediátrica @Léu Britto/ Agência Mural
'Tem a vontade de fumar e a nicotina viciante. É uma briga entre você e você”, diz Wellington @Léu Britto/ Agência Mural
*Os nomes de Nicoly e Caio são fictícios, a pedido dos jovens, a fim de evitar punições.
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World
Repórter da Agência Mural desde 2023 e da rede Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project. Vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
Jornalista com experiência em jornalismo online e impresso, tem publicações em diversos veículos, como Uol, The Intercept e é ex-trainee da Folha de S. Paulo no programa para jornalistas negros. Correspondente de São Bernardo do Campo desde 2014.
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