Historiador aponta presença de curandeiros, linhas férreas, colônia de italianos, indústrias e uma das primeiras fábricas de farinha de mandioca do país fizeram parte da história do século 19
Por: Giacomo Vicenzo
Notícia
Publicado em 12.02.2019 | 10:11 | Alterado em 21.06.2023 | 13:33
Quem chega pela primeira vez em Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital, e vê a sequência de prédios da Cohab não imagina que ali esteve uma das primeiras indústrias de farinha de mandioca do Brasil, uma fazenda onde havia extração de madeira e uma linha férrea para um bonde que ligava o distrito ao bairro vizinho de Guaianases.
Este era o cenário entre 1895 e 1905, 65 anos antes da construção do maior conjunto habitacional da América Latina – hoje são mais de 200 mil habitantes.
O resgate da memória da região faz parte da pesquisa do morador do bairro e historiador Márcio Reis, 42, que escolheu este tema para o trabalho na conclusão do curso de história, na Unicastelo-Itaquera.
A pesquisa “Formação do Bairro Cidade Tiradentes” chegou à subprefeitura que, com base nas informações, pretende fazer uma mudança no nome do distrito: de “Cidade Tiradentes” para “Santa Etelvina Cidade Tiradentes”.
Um ofício foi enviado à Câmara dos Vereadores fazendo a solicitação. “É fundamental o resgate da memória do bairro para as pessoas terem referência”, afirma o subprefeito, Oziel Souza.
Grandes áreas do distrito levam o nome Santa Etelvina, denominação usada no século 19. Etelvina era esposa de Rodovalho. Foi também o nome do bondinho construído por ele que interligava a região com o atual distrito de Guaianases.
Nos anos 1980, a criação do Conjunto Habitacional teve o nome de Cidade Tiradentes, como menção ao líder da inconfidência mineira Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792).
Márcio pagou as mensalidades do curso superior com o que recebia pelo trabalho de entregador de pizzas no bairro. A função também ajudou a conhecer a geografia do lugar.
“Entrei em todos os prédios da Cidade Tiradentes. Entreguei pizzas aqui por 10 anos. Antes disso eu tinha um emprego na Lapa [zona oeste de São Paulo], mas era muito longe, demorava três horas para ir e, por conta disso, não conseguia estudar”, lembra Márcio.
Após a aprovação e ter se formado, ele deu aulas em escolas municipais do bairro e dividia o tempo entre as salas de aula e os inúmeros periódicos digitalizados pela Hemeroteca Digital Brasileira. O professor fez recortes do que saía nos jornais do período e reuniu um acervo capaz de contar a história da região antes de se tornar Cidade Tiradentes.
“O local era do coronel Antonio Proost Rodovalho, um homem rico e poderoso, que também tinha uma casa onde hoje é a Penha, que inclusive o Imperador Dom Pedro II se hospedava quando vinha ao Brasil”, explica Márcio.
A propriedade de Rodovalho era uma grande fazenda que sobrevivia da extração de madeira e pequenas indústrias também administradas por ele. No entorno viviam colônias de espanhóis e italianos. “Existia cerca de 54 casas na vila, uma estação de trem/bonde e armazém”, diz Márcio.
Os periódicos da época reúnem relatos inusitados e violentos. Como a briga de dois italianos pela repartição de uma melancia que acabou em facadas. O temperamento esquentado de um espanhol que se sentiu ofendido pela recusa de um presente (uma garrafa de pinga) também virou notícia.
Outro fato interessante era a presença de um curandeiro no local que, de acordo com as pesquisas de Reis, atendia a aristocracia de São Paulo. “Ele foi preso algumas vezes, na época isso era crime”.
“Aqui [Cidade Tiradentes] também foi um dos lugares a receber os primeiros telefones do Brasil. Não o telefone como conhecemos hoje. Mas era uma espécie de linha com dois pontos. Um ficava aqui e outro em Guaianases. Eles se falavam para comércio e controle do bondinho”, diz Márcio.
“Uma disputa entre Rodovalho e o proprietário de terras de Guaianases fez com que depois da morte do proprietário os trilhos do bonde fossem arrancados”, explica o historiador.
A avenida Sousa Ramos, uma das principais que cortam o bairro, já existia antes da chegada da Cohab, aponta Márcio, em que uma notícia fala sobre uma escola nessa via. “Possivelmente era uma escola para trabalhadores da pedreira de Guaianases”, sugere o pesquisador. “Ainda hoje, há uma pedreira ativa no distrito de Guaianases, mas não é a mesma.”
Outro local preservado dessa época é a Casa da Fazenda, imóvel construído por Rodovalho há dois séculos e que é a atual Casa de Cultura do Hip Hop Leste.
Com o tempo, outras famílias compraram a fazenda, sendo o último proprietário Saturnino Pereira, que dá nome a uma estrada da região e uma escola municipal.
Saturnino usava a casa como um refúgio de lazer aos fins de semana e o entorno era ocupado por trabalhadores da pedreira em Guaianases, que foi desativada e logo fez com que muitos habitantes migrassem do local em busca de novas oportunidades.
Desde os anos 1980, década em que os primeiros apartamentos da Cohab foram entregues aos moradores, muita coisa mudou no bairro. Grandes comércios chegaram à região que no início contava com poucas linhas de ônibus e nenhum grande mercado no distrito.
“Aumentou muito o número de pessoas por causa de algumas invasões e pela inauguração de outros setores no Conjunto Habitacional”, comenta o professor Paulo Rodrigues da Silva, 42, que mora no bairro desde 1984. “Essa parte onde hoje é a região conhecida como Setor G era completamente mata fechada. Como minha mãe mora no setor 81, eu fazia trilha e ia para as cachoeiras na Sete Cruzes, local que fica próximo à Ribeirão Pires na divisa do bairro”, lembra Silva.
Para ele, o trabalho de Márcio Reis é importante para o bairro e desperta interesses dos mais jovens. “É um cara que cresceu aqui e desenvolveu esse lado de pesquisador. A molecada do bairro também tem admiração e respeito pelo trabalho dele”, completa.
Márcio mantém uma página no Facebook sobre a formação do bairro da Cidade Tiradentes e troca registros com moradores antigos. Ele também dá palestras sobre o tema em escolas municipais do bairro.
Como muitos dos moradores que vieram ocupar os prédios da Cohab, Márcio e a mãe, Fátima dos Reis, 63, chegaram em Cidade Tiradentes em 1992 para realizar o sonho da casa própria.
Márcio vê crescimento e desenvolvimento no bairro, mas é contundente em dizer que ainda faltam recursos e atenção pública ao bairro. “Falta educação, lazer e emprego”.
Enquanto Márcio conversa com a reportagem, uma mulher passa segurando uma criança pela mão. Ela revira entulhos para retirar um grande brinquedo de pelúcia. Os olhos da criança se arregalam e ambas deixam o local sorrindo. “Olha de onde vem o presente aqui. Ver esse tipo de coisa aqui me parte o coração”, comenta.
Jornalista. Acredita no jornalismo como ferramenta de transformação social. Iniciou sua carreira profissional no Datafolha, já publicou no UOL TAB e Revista Galileu. Gosta de contar e ouvir boas histórias. Adora seus gatos de estimação e não consegue viver sem senso de humor. Correspondente da Cidade Tiradentes desde 2018.
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