Por: Rômulo Cabrera
Publicado em 08.02.2019 | 15:44 | Alterado em 28.02.2019 | 18:17
“O que vejo nos noticiários é que será uma coisa boa. Mas alguns dos meus professores dizem que será algo ruim. Então meio que estou em cima do muro em relação à reforma [do ensino médio]”, disse Marcos Vinicius, 17, secundarista do 3º ano, da escola estadual Herbert Baldus, no Jardim São Bernardo, no Grajaú, zona sul de São Paulo. O garoto, tímido, logo emenda: “Resumindo: eu não sei o que é.”
Alunos ouvidos pela Agência Mural se dividem entre aqueles que, como Marcos, escutaram algo sobre o “Novo Ensino Médio”, mas não sabem de fato do que trata a reforma, e aqueles que têm uma vaga noção sobre o assunto.
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) do ensino médio foi homologada pelo MEC (Ministério da Educação), em dezembro passado. O documento somou-se à base comum da educação infantil e ensino fundamental, aprovadas em 2017. Segundo o MEC, as escolas precisarão adequar os programas às novas regras até o início de 2022. Ainda conforme o MEC, R$ 58 milhões seriam repassados aos estados e ao Distrito Federal “para que comecem o processo de implementação” da reforma.
No entanto, tanto alunos como professores ainda têm dúvidas sobre as reais mudanças que serão feitas.
O documento define o conteúdo mínimo que os estudantes de todo o Brasil deverão aprender. Prevê, por exemplo, que as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática terão carga horária obrigatória ao longo dos três anos do ensino médio – as demais disciplinas, como filosofia e história, seguem, mas organizadas de forma interdisciplinar (estabelecendo relações entre uma ou mais matérias).
O restante, cerca de 40%, será destinado aos chamados “itinerários formativos”, com foco em quatro áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional. Nestes casos, a escolha das disciplinas fica a critério dos próprios estudantes.
“Minha dúvida, na verdade, é sobre o porquê [dessa reforma]. Claro que se pensarmos sobre isso, seria ótimo podermos escolher o que queremos cursar ao longo do ensino médio. Mas, ao mesmo tempo, todas as matérias que temos eram e ainda são essenciais”, comenta Giovana Ramos dos Santos, 15, que começa o primeiro ano do ensino médio neste ano na escola estadual Professor Geraldo Justiniano.
A jovem mora em Suzano, município da Grande São Paulo, e diz gostar das disciplinas de história, filosofia e sociologia. Conforme afirma, ela e os amigos sentirão “o peso de não ter estudado as disciplinas importantes”.
Para o professor da Feusp (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo), Marcos Garcia Neira, 51, ao dividir “de maneira bem confusa” o currículo do ensino médio, o governo tira “sobretudo da população mais humilde, o direito de acessar o patrimônio cultural que a humanidade produziu”.
“Imagino que as comunidades das periferias vão sair derrotadas desse processo”, diz. “Ainda mais numa semana em que o ministro da Educação afirma que o ensino superior é para uma ‘elite intelectual’.”
Neira se refere a um episódio envolvendo o ministro Ricardo Vélez Rodriguez, para quem as “universidades devem ficar reservadas a uma elite intelectual”. Vélez também defendeu a ampliação dos cursos técnicos profissionalizantes como forma de garantir a rápida inserção dos jovens no mercado de trabalho.
“Na minha opinião, a periferia será extremamente afetada com essa reforma. O ensino ficará mais tecnicista e engessado”, protesta Lucas Volney de Carvalho, 25, professor de história na escola Herbert Baldus, na zona sul de São Paulo.
FALTA DE DIÁLOGO
Os três professores consultados pela reportagem são unânimes: durante o processo de elaboração da BNCC, que se arrastou por quatro anos, não houve diálogo entre o poder público e os docentes.
Em novembro, a Agência Mural mostrou um protesto realizado por professores da Etec Bogasian, em Osasco, que se posicionaram contra as mudanças na grade curricular do curso oferecido aos alunos do ensino com qualificação profissional. As mudanças ocorreram para atender às exigências da reforma do Ensino Médio. Segundo os docentes, não houve tempo para se discutir as reformas.
Não à toa, o tema ‘Novo Ensino Médio’ foi pouco explorado nas salas de aula. “Nós não tínhamos informações sobre [a reforma]. Alguns alunos queriam saber como é que seria a vida deles dali em diante – sobretudo os alunos que estudam à noite”, comenta André Nascimento, 37, mestre em filosofia e professor da rede estadual em Suzano.
Para ele, há uma distância entre a vida prática do aluno e a ideia da reforma. Apesar das mudanças curriculares soarem interessantes, em um primeiro momento, “tudo parece muito vazio”.
Para Neira, ainda restam muitas perguntas sem respostas. “Com apenas a base para todo mundo [Língua Portuguesa e Matemática], como ficam os outros saberes? De que maneira os sistemas [de ensino] irão elaborar os itinerários? Ninguém sabe. De que maneira os sistemas contratarão os docentes?”, questiona.
A preocupação parte do fato de que a maioria dos municípios do Brasil só tem uma escola de ensino médio. De acordo com reportagem publicada pelo jornal Estado de S. Paulo, 53% das cidades brasileiras têm uma só escola que oferece o ensino médio regular ou educação profissionalizante.
“Você imagina que em um município que só tem uma escola de ensino médio irá oferecer todos os itinerários? É raro, não? Frente às muitas realidades do Brasil, dizerem que o jovem poderá escolher. Desculpa, mas os jovens não terão escolha porque cada sistema de ensino oferecerá o que tem condições de oferecer”, provoca Neira.
POUCAS MATRÍCULAS
Em 2018, foram registradas 7,7 milhões de matrículas no ensino médio, segundo dados do Censo Escolar. Os resultados foram apresentados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), ligado ao Ministério da Educação. Nos últimos cinco anos, o número total de matrículas do ensino médio caiu 7,1%.
No entanto, mesmo em um cenário como esse, o professor André ainda enxerga a educação como meio de promoção “de uma justiça social”. “A escola, em grande parte, ainda é pensada para manter as coisas como estão”, sugere. Ele cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu, para o qual, tratando formalmente de modo igual, em direitos e deveres, quem é diferente, a escola privilegiaria quem, por sua bagagem familiar, já é privilegiado.
“Em outras palavras, existe um modelo educacional que funciona, mas é um modelo que funciona para um lado e não para o outro. A ideia de um modelo educacional que promova as pessoas socialmente não está nos horizontes do nosso novo ministério”, afirma.
“Esses ‘senhores’ não frequentam as escolas dos extremos do Brasil”, diz Lucas Volney. Ele continua: “Não enxergam as nossas necessidades. Infelizmente, isso fará dos alunos meras mãos-de-obra, já que desvaloriza as disciplinas críticas, como artes, filosofia, história e sociologia. E nós, que moramos na periferia, mais do que ninguém, sabemos que o estudo liberta”, conclui.
Procurado nesta quinta-feira, o MEC não retornou até a publicação desta matéria.
Rômulo Cabrera é correspondente de Suzano
romulocabrera@agenciamural.org.br
Formado em Jornalismo. Operário do texto, apresentei o podcast Próxima Parada da Agência Mural. Dou uma de videomaker às vezes. Futuro ex de alguém. Sommelier de tubaína. Correspondente de Suzano desde 2018.
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